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O que dizem as mãos

 

Na fímbria longínqua do horizonte, emoldurada por nuvens etéreas, a rododáctila deusa Aurora, entre cores de matizes indizíveis, já afasta os véus arautos da ascensão gloriosa do Astro-Rei, que logo cruzará mais uma vez o nosso céu abençoado, alardeando ao mundo a grandeza da Criação e a sublime dádiva da Existência. Entre as cobertas macias que lhes envolviam os corpos tão felizes quanto suas almas afortunadas, os brasileiros principiam seu garrido despertar, tornado ainda mais venturoso que de hábito, pela lembrança que logo lhes vem às mentes jubilosas: hoje é novamente dia de eleição!


Sim, hoje é dia de eleição! Que sorte temos, os habitantes de cidades onde está havendo segundo turno. Podemos votar de novo, mais uma vez participar desse espetáculo nobre e enobrecedor, que nos enche de brio o peito já ufano. Somos livres, somos soberanos, somos quem verdadeiramente manda em nosso país, somos uma democracia exemplar - e como é lindo ver o povo neste dia engalanado, decidindo sobre o próprio destino. Dia da liberdade, dia da justiça, dia da verdade.


Não é nada disso, é claro, mas preferi começar assim porque vocês, caridosos leitores e eleitores, não têm nada a ver com meu mau humor (escrevo um pouco antes deste domingo, mas tenho certeza de que o mau humor persiste ou até piorou) e muito menos obrigação de aturá-lo. Esse começo - confesso agora, um pouco envergonhado - foi um esforço de fingimento e brincadeira que eu tencionava levar adiante, ao sentar-me diante deste teclado. Que diabo, não vamos ficar repetindo a inútil ladainha de sempre, vamos - desculpem - relaxar e gozar. É isso mesmo, não tem jeito, talvez as coisas melhorem quando os nossos netos começarem a ter netos, previsão que considero otimista não só para o Brasil como para esta espécie atrasada que é a humanidade, mas que, de qualquer forma, é uma esperança.


Certo, certo, mas, intrigantemente, minhas mãos não me obedecem e parece que ficam digitando as teclas que elas próprias escolhem, em vez das que o suposto dono delas preferiria, como talvez acontecesse num conto de Borges ou Poe. Experiência interessante, esta. Um pouco esquizofrênica, quiçá, mas até divertida. O dono das mãos pode fingir ou mesmo mentir explicitamente, mas as mãos se recusam a isso. Aceito opiniões psiquiátricas sobre este curioso fenômeno, embora rogue que sejam encaminhadas ao editor.


Os fatos desmentem que sejamos uma democracia representativa. Em rigor, não somos nem mesmo uma democracia. A soberania é nominalmente popular, mas sabemos que os chamados representantes não soem representar ninguém a não ser eles mesmos e os governantes não agem como servidores dos governados, mas como seus patrões, com a nossa aviltante concordância ou mesmo subserviência. Para isso, cobrem-se de privilégios, imunidades, salvaguardas, firulas jurídicas ou puro e simples banditismo. Mas fazem o que querem, não dão satisfação a ninguém e é raro o caso de político brasileiro que não morre com seus bens, no próprio nome ou no de manjados laranjas, consideravelmente aumentados.


Ninguém entre os poderosos é punido por coisa nenhuma, como também sabemos. Não quero nem imaginar o que me responderiam e há o risco de ser eu que acabe entrando em cana, se perguntar, por exemplo, que aconteceu ao dr. Palocci por (supostamente, apresso-me a acrescentar, a fim de evitar a dita cana) se ter valido do cargo para cometer uma gravíssima violação da lei, segundo foi acusado (supostamente, alegadamente, etc.). E esse exemplo é um entre, sei lá, dezenas, centenas ou, com certeza, milhares, se levarmos em conta o que de sujeira certamente ocorre sem que saibamos.


São Paulo, a maior cidade brasileira, uma das maiores cidades do mundo, de que tenho orgulho e de que todo brasileiro deveria ter orgulho, independentemente de bairrismos mesquinhos e bestas, ou preconceitos ainda piores, há muito vê a sua prefeitura abastardada por gente que não enxerga nela mais que um trampolim para posições de maior poder. Isso ofende, quer se tenha consciência ou não, São Paulo e os paulistas. E, porque não pode deixar de ser assim, ofende, também quer se tenha consciência ou não, a todos os brasileiros, porque São Paulo é patrimônio e galardão do nosso povo.


O Rio de Janeiro, emblema e amor nosso, a força cultural responsável por tanto da melhor identidade brasileira, hoje tem seu braço torcido, para votar em quem interessa ao poder. Que negócio é esse de insinuar ou ameaçar claramente que, se não dançar conforme a música do poder, o Rio de Janeiro vai se dar mal e ficar à míngua de recursos? O Rio de Janeiro não pode se dar mal porque não pode se dar mal e acabou-se. Seria uma indecência e uma aberração, se isso dependesse da vontade, da ambição ou do capricho de alguém. O Rio também é patrimônio e galardão do nosso povo e não é favor nenhum dar-lhe o que tem direito, nem apoiar decisivamente sua luta para vencer a violência, a insegurança e a corrupção que a assombram e ameaçam. É obrigação elementar e inescapável, inclusive moralmente.


E, em todo o país, golpes baixos para entortar de alguma forma a expressão da vontade dos eleitores, manobras torpes, enganação, chantagem, até assassinatos. Cada vez mais se torna patente que não basta votar, lavar as mãos e depois virar platéia, como é nosso costume. É preciso brigar, é preciso desafiar sadia e corajosamente o mau governante, é preciso que nos respeitemos o suficiente para nos fazermos respeitados, é preciso exigir, tomar satisfações, batalhar, ter vergonha na cara. Isto dizem estas duas mãos, porque, sim, o escritor pode mentir, mas as mãos do escritor não podem mentir.


O Globo (RJ) 26/10/2008

O Globo (RJ), 26/10/2008