Hoje é dia de São Lucas, autor, segundo a tradição, de um dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos. E é também o Dia do Médico, porque, sempre de acordo com a tradição, esta foi a profissão que Lucas, nascido em Antióquia, atual Síria, exerceu. Pouco se sabe sobre sua vida. As evidências de que teria mesmo sido médico são escassas e baseiam-se muito na analogia entre a linguagem que usa e a de Hipócrates, e também no fato de que menciona muitas doenças. Admitindo que Lucas tivesse mesmo exercido a medicina, a pergunta que cabe é: o que teria atraído um médico para o cristianismo?
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A resposta tem a ver com a dramática mudança de curso histórico implicada na ascensão do cristianismo, mudança esta que se reflete na visão da doença e da cura. No Antigo Testamento, médicos são raramente citados: assim, o rei Asa, portador de uma séria enfermidade dos pés, morre por ter consultado médicos ao invés de recorrer ao Senhor. Deus dá a saúde e a doença, principalmente a doença, vista como castigo do pecado (o caso da lepra) ou como teste da fé, no caso de Jó. No Novo Testamento, não. Jesus cura vários doentes, e até ressuscita um morto. O cristianismo fará do cuidado aos enfermos uma prioridade, criando o hospital, e transformando esse cuidado no objetivo de muitas ordens religiosas. Compaixão era a palavra de ordem, sobretudo em tempos nos quais a ciência podia fazer muito pouco contra a doença, e isto talvez tenha tornado Lucas um cristão.
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Vivemos agora uma nova mudança. A medicina cura, e cura muito, coisa que se reflete no extraordinário aumento da expectativa de vida. Qual o papel da compaixão na medicina moderna? Aparentemente este papel se reduziu muito: um antibiótico cura um processo infeccioso com ou sem compaixão. Compaixão, aliás, não é coisa muito valorizada no agressivo mundo em que vivemos. Mas esta pode, e deve, ser uma tarefa adicional da medicina: recuperar a aproximação emocional entre seres humanos, coisa para a qual a doença fornece uma oportunidade única. Compaixão ajuda muito, inclusive no processo de tratamento. Neste Dia do Médico, está aí algo sobre o qual vale a pena pensar. Com isto o dr. Lucas certamente concordaria.
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Recebi uma carta do presidente do Simers, dr. Paulo Argollo Mendes, abordando matéria que publiquei em ZH, intitulada “O direito à saúde”. Comentei o artigo que, na Constituição de 1988, consagra a saúde como direito de todos e dever do Estado, artigo este que serve de fundamento para ações contra o Estado e que tem gerado distorções. Recentemente, segundo o portal oficial de notícias do governo de São Paulo, foi presa uma quadrilha que fraudou R$ 63 milhões do Estado: um grupo formado por dois advogados, três representantes comerciais, um gerente regional de laboratório, dois diretores de uma ONG e um médico.
O objetivo do grupo era obrigar o governo estadual a adquirir medicamentos fora do protocolo indicado pelo Ministério da Saúde e fornecê-los gratuitamente a pacientes. O detalhe grave é que, destas pessoas, e sempre segundo a notícia, algumas sequer tinham doenças. Mais: os pacientes ignoravam que eram autores de ações contra o Estado. O presidente do Sindicato pondera que a indicação de tais medicamentos criam graves dilemas, mas que não devem afastar o propósito de obter o melhor para os pacientes. Finalmente informa que o Simers dispõe-se a investigar casos de distorção na área. O que está dentro da tradição do Sindicato, de defender o correto exercício profissional.
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Sobre o mesmo tema escreve-me o dr. Airton Fischmann, epidemiologista, para dizer: “Nós, da área de saúde pública, sempre pensamos em investir em saúde para diminuir o número de doenças, e os apelos políticos, populares, da mídia, são os de investir na doença para conseguir saúde”. Se houvesse mais promoção de saúde, “menos medicamentos seriam necessários, menos filas para atendimentos, menos internações”.
Zero Hora (RS) 18/10/2008