Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Sarney usa a crônica como antídoto contra o rancor de nosso tempo

Sarney usa a crônica como antídoto contra o rancor de nosso tempo

 

A JULGAR pelas enquetes de confiabilidade que comparam diferentes categorias, os brasileiros não levam muito a sério os seus políticos, o que pode corresponder a uma histórica frustração e/ou a algum grau de preconceito. Mas o que acontece quando o político exerce alguma outra atividade ou profissão? Quando ele é, por exemplo, um médico? Será que os pacientes deste médico o verão com a mesma desconfiança com que avaliam o político? E se ele for um jornalista, como será avaliado?


Esta última pergunta é mais que pertinente, por causa da inevitável proximidade, da simbiose quase, entre jornalismo e política. Esta proximidade não exclui diferenças e contradições, ligadas, sobretudo, à relação de cada uma das atividades com a informação. O jornalismo, por definição, faz circular a informação; a política, ao contrário, muitas vezes detém a informação. Deter a informação, como deter o saber, significa poder. E poder é, ao fim e ao cabo, o grande tema da política.


José Sarney tem uma longa carreira política. Eleito deputado federal em 1954, é o parlamentar mais antigo em atividade no Congresso. Foi senador, governador do Maranhão e assumiu a Presidência da República em condições difíceis: o presidente eleito, Tancredo Neves, do qual José Sarney era o vice, adoeceu e veio a falecer, no momento em que o Brasil retomava o caminho da democracia, ainda sob a sombra da ditadura.


A carreira jornalística e literária de José Sarney iniciou-se antes mesmo de sua carreira política. Colaborou em numerosos jornais e revistas, sobretudo do Nordeste, mas também escreveu para o "Jornal do Brasil" e "O Globo". Desde 1982 é colaborador da Folha. Membro da ABL, é autor de várias obras nos gêneros ensaio, poesia, conto, crônica e romance, a mais recente das quais é "A duquesa vale uma missa" (romance, 2007). A sua bibliografia junta-se agora o volume "Crônicas do Brasil Contemporâneo - volume VII", reunindo textos publicados nos anos de 2006 e 2007.


Abrangem temas muito variados, refletindo a intensa experiência de vida e a ampla gama de interesses do autor. Mas a política está, claro, presente nelas, e o autor evoca muitos momentos de sua movimentada carreira. Cada crônica é precedida de uma frase e de uma lista dos fatos importantes que ocorriam no momento, de modo a situar melhor o leitor na conjuntura da época. Em "A Bolívia e seus demônios", fala de uma conversa que teve com o presidente Ronald Reagan acerca do país latino-americano, sublinhando o escasso interesse do mandatário estadunidense no tema. Em "Vinte anos do cruzado", comenta o plano econômico que, como presidente da República, editou em 1986.


Em "O jogo dos sete erros", fala da desastrada política norte-americana no Oriente Médio. Momentos transcendentes da história do Brasil e do mundo são assim retratados e comentados. Não espere o leitor, contudo, revelações sensacionais, mesmo porque raramente a crônica é adequado veículo para esse tipo de revelações. Trata-se de um gênero muito peculiar e muito brasileiro: entre nós, pode ser vista como a transcrição, na página do jornal, da conversação informal, do papo descontraído que nossa gente cultiva. Se o jornalismo é diferente da política, a crônica é mais diferente ainda, exatamente por seu caráter leve, descompromissado. Mas há considerações que fazem pensar, como em "O ódio e a inveja". Na frase que inicia o texto diz José Sarney: "Na prática, a política é uma contenda, uma disputa, uma luta por poder e autoridade, sem esquecer que lida com a violência".

 

E, mais adiante: "Velho político, duas coisas acho que movem a prática da política: o ódio e a inveja, sentimentos que destroem os contendores". Talvez esteja aí o motivo pelo qual José Sarney optou pela crônica como forma de veicular suas considerações sobre a vida e o mundo: esse gênero estaria, até por sua origem, preservado do rancor e da violência de nosso tempo; funcionaria, pois, como uma defesa, como uma proteção contra os "petardos e flechas lançados por um destino afrontoso", de que fala Shakespeare em Hamlet. Simbolicamente, a última crônica é uma carta a Papai Noel, uma tentativa de recuperar os sonhos e as fantasias da infância.


"De viver, vive-se", diz Sarney. Vive-se duramente, ainda que apaixonadamente, na política; vive-se liricamente na crônica.


Folha de S. Paulo (SP) 20/09/2008