Era meu direito, em qualquer tempo, cometer aquele ultraje à arte e ao equilíbrio das leis universais
PERGUNTARAM A Mané Garrincha o que ele tinha achado de Roma. A resposta veio em forma de pergunta: "Roma? Aquela cidade onde seu Zezé perdeu as chuteiras?".
É por aí mesmo: Roma tem sido cantada ao longo da história. Goethe, Byron e Stendhal a proclamaram rainha de todas as cidades, mas para Garrincha a milenar "caput mundi" reduziu-se à portaria de um albergue três estrelas, onde a delegação do Brasil viveu o transe da perda das chuteiras do técnico Zezé Moreira.
Em confronto com a realidade, eu me sinto como Garrincha diante dos mármores eternos da cidade idem. Continuo achando que a coisa mais importante, deste e de outros séculos, é o meu umbigo. A rigor, pouca importância dou a ele: nunca me criou problemas e, se é verdade que nunca me foi motivo de glória, tampouco me deu vexames.
Por mais desprezo que tenha pelo tempo, o meu e o dos outros, não cometerei o exagero de situar no meu umbigo o núcleo de tudo o que rolou pela história, tudo que se recolheu para sempre no dia-a-dia do mundo, na enseada -negra e silenciosa- do universo.
Contudo, em volta do citado umbigo, existo eu, por bem ou por mal, medida de todas as coisas. E, de todas as coisas, a mais próxima das chuteiras do seu Zezé Moreira foram uns ladrilhos que despencaram na minha cozinha. Ladrilhos decorados que me obrigaram a comprar alguns tubos de tinta e um pincel para tentar disfarçar o rombo na parede.
Feito o reparo (não havia ladrilhos iguais nas boas lojas do ramo), sobraram-me o pincel e os tubos de tinta pela metade. Se fosse eu um homem austero, de sólida formação cultural, teria jogado fora tubos e pincel. Mas -como diria o Sombra-, "Quem sabe o mal que se esconde no umbigo (ou na consciência) dos outros?".
Disso tudo resultou um quadro inicialmente figurativo, com uma canoa abandonada na praia, uns urubus no céu, embora a canoa parecesse uma banana podre e os urubus saíram tão ruins que nem urubus pareciam.
Daí, na mesma tela, transformei o figurativo em abstrato e surgiu uma espécie de cocar de índio ou coisa semelhante. Até aí, tudo bem. Era meu direito, em qualquer tempo ou modo, cometer aquele ultraje à arte e ao equilíbrio das leis universais.
Lamentável foi que alguém comprou o quadro, emoldurou e colocou em sua parede. A partir daquele instante, inaugurava-se na história uma nova era de audácia e proveito. Fiz, dei e vendi outros quadros, obtendo resultados que me espantavam antes de espantar os outros. E, por coincidência, tentei retratar alguns momentos do nosso tempo, das coisas que então estavam acontecendo à minha volta.
Por exemplo, denegri a santa memória de Tancredo Neves, fazendo uma alusão à sua agonia -um dos fatos importantes daquele tempo. Tomei como referência "O Enterro de Casagemas", de Picasso.
O que sobrou da boa intenção foi uma enorme vela esverdeada, tremendo num espaço ocre e coral. Fiz também complicada alegoria à abertura política nacional, à decantada transição democrática que começávamos a viver. O quadro resultou confuso, tanto ou mais do que a transição que até hoje parece que ainda não acabou.
A posteridade me será grata, um dia, por não ter tentado pintar alguns assuntos que estão dando sopa: o atentado ao World Trade Center, a devastação da selva amazônica (um tema que mais cedo ou mais tarde não escapará), os coletes do ministro Carlos Minc, os bafômetros para impedir desastres -assunto é que não falta.
Por ora, falta o engenho e falta, sobretudo, a arte, mas não me falta imaginação. Se um cataclisma acabar com toda a civilização, e dos escombros sobrar apenas um dos meus quadros, digamos, a tal vela que lambe o espaço ocre e coral na malsucedida imitação do enterro de Casagemas. Minha vela se transformará no ponto de referência obrigatório dos primeiros 40 mil anos de história.
Será uma vela anônima, atribuída a autor anônimo, devorado anonimamente pela goela do tempo. O que dela dirão pouco importa. Importa é que, num determinado momento da vida de alguém, ela iluminou, com sua cor esverdeada e triste, o instante solitário de um homem -cúmplice de seu destino e de seu umbigo.
Folha de S. Paulo (SP) 18/7/2008