Ganha a poesia brasileira, cada vez mais, um ritmo de canção que pode ter recebido um antigo impulso no livro "Canções", de Cecília Meireles. Ainda há pouco também Carlos Nejar publicou suas "Canções" cuja força aqui realçamos em artigo recente. Recebo agora o livro "Cantares", de Lúcia Fonseca, digno de figurar entre os belos volumes de poesia publicados entre nós. Veja-se a beleza de seus versos em "Noturno II".
"Aqui é noite./ Definitiva noite/ como dentro de um fruto./ Um peixe que se percebesse só no oceano/ talvez sentisse medo./ E no entanto é só que ele nada/ o mais das vezes. Aqui é noite./ Apalpo sementes no ventre escuro do sono./ Tudo é tão quieto, calado, enrodilhado em pelúcia./ Que longas as gestações;/ o mendigo, o palhaço, o príncipe, o bêbado, o triste/ se fazem assim, no escuro - só mais tarde, sob as luzes/ serão coroados./ Nessa hora, entre todas, a mais silenciosa/ imóveis dormem sonhos e poemas - sementes na bruma./ Ouvir-lhes o silêncio, o sono,/ confiar - eis tudo".
Em seus "Cantares", descobre Lúcia Fonseca uma coisa dentro da outra, numa faculdade lúdica do poeta, que vem a ser também uma busca de realidades e da realidade. Seu domínio sobre as palavras provoca, em geral, a desejada adequação entre conteúdo e linguagem. Com esse domínio, consegue a autora chegar a essa transmutação da realidade em cantos. Em cantares. Consegue também infundir nos seus versos aquele "autêntico e inimitável sabor da vida", que Reverdy coloca no ápice da função poética.
Há na poesia uma posição que poderíamos chamar de "posição da dignidade". É certa finura no perceber as coisas e no mencioná-las. Estou falando ainda do momento que antecede a feitura do poema, da predisposição interna do artista, do modo como pega a realidade, antes de glorificá-la em palavras. Esse modo de ver - sereno a aparentemente distante dos objetos - quando desligado da sensoriedade dos românticos, já levou muito poeta ao parnasianismo e ao simbolismo.
O afastamento do sensorial provoca ligeira guinada para o cerebral e, aí, adquirem as palavras certa pureza que um romântico de verdade dificilmente conseguiria exibir. Se quisermos situar Lúcia Fonseca numa linha de antecedentes, poderíamos citar Alphonsus de Guimaraens, Raul de Leoni e Cecília Meireles.
Importa pouco tenha a forma poética mudado tanto desde o tempo desses poetas. Merece, sim, ser assinalada a existência de uma atitude interior que os coloca - a eles, a Cecília e a Lúcia - na disposição de, repetindo Mallarmé, "não ceder a iniciativa às palavras".
Para mostrar o modo como Lúcia Fonseca se apossa das palavras, levando-as a um ritmo dramático e forte baseado no verso "Vim para morrer", transcreverei os vinte-e-quatro versos de seu poema Trânsito:
"Vim para morrer. Trago comigo/ os panos de linho claro, mão fechada, um lenço/ e o gesto do recém-nascido. / Ao pescoço, / sete voltas do cordão. Medalha. // Quem disse que trouxe nos olhos abertos/ lendas de antigas infâncias? / Quem disse que, das mãos, escapou-me a ânfora, / lançando ao chão, em cacos, o vinho? / Vem para morrer tão simplesmente, / como caem as folhas e se apagam os cigarros/ no final de um ciclo. / Decerto o que tinha de cumprir, cumpri./ Embora esperasse mais. (Somos sempre uns príncipes em pensamento).// Ainda as vísceras se esforçarão em seu inocente exercício./ Ainda o pulso latejará por obrigação de mais um dia./ O sol pousará no horizonte. Pela janela ainda verei a lua/ nascer dourada no mar./ Então partirei, madrugada./ Deixo - infelizmente - / o quarto desarrumado,/ a cama desfeita/ os papéis em desordem".
"Cantares" é um lançamento da Editora da Palavra. Revisão de Rosane Ramos, capa de Gabriel Vaser. Prefácio de Reynaldo Valinho Alvarez, que apresenta uma ótima análise da obra de Lúcia Fonseca que é detentora do Prêmio Emílio Moura do Governo de Minas Gerais, a ela concedido no começo de sua atividade literária.
Tribuna da Imprensa (RJ) 3/6/2008