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Uma história de amor

 

Houve uma casa, situada no Rio Vermelho, Salvador, Bahia, em que a literatura brasileira ganhou muitos de seus melhores livros. Lá Jorge Amado fixou para sempre a imagem de Quincas Berro Dágua e Zélia Gattai foi ao passado para eternizar os anarquistas italianos que davam graças a Deus por serem o que eram. Naquele banco do jardim da casa do Rio Vermelho, Zélia entregou a Jorge o original desse primeiro livro seu, que o espantaria pelo modo pessoal e direto com que Zélia buscara o passado e contara uma história verdadeira de sua família.


Agora, naquele mesmo banco de jardim em que Zélia entregara seu original a Jorge, estão as cinzas de um e de outro. Lá foi o autor destas linhas para o adeus. Lá voltei ao passado e lembrei-me das viagens que fizemos juntos, pela Suécia, Noruega, Irlanda, Bélgica, Bulgária, França, Itália, Polônia, Portugal, Espanha. Em geral, eu fazia conferências sobre os livros de Jorge e Zélia, às vezes com a presença dos dois.


O livro "A casa do Rio Vermelho", de Zélia Gattai, lançado ainda em vida de Jorge, surgiu como documento imprescindível ao conhecimento de aspectos não muito conhecidos da vida do casal. Assim, a casa do Rio Vermelho foi comprada, explica Zélia, com dinheiro do imperialismo norte-americano. A Metro Golden Meyer comprara os direitos autorais de "Gabriela, cravo e canela" e, com ele, Jorge e Zélia se instalaram na Bahia. A partir de então, a casa passou a ser um centro cultural e ali Jorge - que escrevera a maior parte de "Gabriela, cravo e canela" no Hotel Quitandinha, de Petrópolis, passou a escrever seus romances na Bahia.


Um deles, pelo menos, "Tieta do Agreste", fê-lo em Londres, num apartamento vizinho ao nosso (meu e de Zora), numa temporada mais longa do casal na Inglaterra. A presença dos dois atraía amigos e assim Caribé, Antonio Celestino e Vinicius de Morais chegavam a Londres e participavam da alegria geral que caracterizava o ambiente criado por Jorge e Zélia.


O livro "A casa do Rio Vermelho" transcreve um texto de Jorge dirigido a Zélia, em que ele faz como que o seu testamento de companheiro, em palavras que, lembradas agora, ganham uma dimensão do tamanho da vida. Estas são as palavras: "Dá-me tua mão de conivência, vamos viver o tempo que nos resta, tão curta a vida, na medida de nosso desejo, no ritmo de nosso gosto simples, longe das galas, em liberdade e alegria, não somos pavões de opulência nem gênios de ocasião, feitos nas coxas das apologias, somos apenas tu e eu.


Sento-me contigo no banco de azulejos à sombra da mangueira, esperando a noite chegar para cobrir de estrelas teus cabelos, Zélia de Euá envolta em lua: dá-me tua mão, sorri teu sorriso, me rejubilo no teu beijo, laurel e recompensa. Aqui, neste recanto de jardim quero repousar em paz quando chegar a hora, eis meu testamento". Nesse lugar do jardim, na casa do Rio Vermelho, estão agora as cinzas de Jorge Amado e as cinzas de Zélia Gattai, juntos além do tempo.


A última edição de "A casa do Rio Vermelho", de Zélia Gattai, foi da Editora Record. Essa edição contém longa orelha de Jorge Amado, retirada e seu livro de memórias "Navegação de cabotagem". Comenta aí Jorge Amado: "Não querendo Zélia usar muletas na sua caminhada literária, assinou seus livros com o nome de solteira, voltou a ser Zélia Gattai, renome nacional, por pouco tempo lhe servi de arrimo".


"A casa do Rio Vermelho" teve ilustração de capa de Floriano Teixeira e capa de Pedro Costa. Da obra de Zélia Gattai constam os seguintes livros: Memorialistas: Anarquistas graças a Deus, Record, 1979; Um chapéu para viagem, Record, 1982; Pássaros noturnos do Abaeté, com gravuras de Calasans Neto, 1983; Reportagem incompleta, com fotografias de sua autoria, 1987; Jardim de inverno, Fundação Casa de Jorge Amado, 1988; Chão de meninos, Record, 1992; A casa do Rio Vermelho, 1999; Città di Roma, ilustrado com fotografias de época, 2000; Códigos de família, Record, 2001; Jorge Amado: um baiano sensual e romântico, Record, 2002. Literatura infanto-juvenil: Pipistrelo das mil cores, com ilustrações de Pink Wainer, 1989; Jonas e a sereia, com ilustrações de Roger Mello, 2000. E os romances: O segredo da Rua 18, ilustrado por Ricardo Leite, Record, 1991, e Crônica de uma namorada, Record, 1995.


Tribuna da Imprensa (RJ) 27/5/2008