"Escrever certo é melhor; no mínimo evita incomodações, críticas e deboches. Claro, há convenções para isso, como há para tudo na vida"
O inglês que se escreve na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Austrália é o mesmo. O francês que se escreve na França, no Canadá, na Suíça é o mesmo. O espanhol que se escreve na Espanha, em Cuba, na Venezuela, na Colômbia é o mesmo. Já o português de Portugal se escreve diferente do português do Brasil. Um fato que foi objeto de numerosos debates, discussões, congressos, reuniões. A lógica dizia que a grafia deveria ser unificada; afinal, Portugal, o Brasil, e também Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe fazem parte da CPLP, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, cujo ponto de partida foi uma reunião em São Luís do Maranhão em 1989, por iniciativa do presidente José Sarney.
Se era uma comunidade, e uma comunidade definida pelo idioma, era claro que esse idioma comum deveria ser grafado de maneira comum, o que exigia uma reforma ortográfica para compatibilizar as diferentes formas de grafia. Um acordo a respeito foi firmado em 1990 e aprovado no Brasil em 1995, mas não aprovado por Portugal, o que deu margem a uma polêmica: que tipo de grafia deveria afinal predominar? Portugal é o país gerador do idioma; o Brasil, o país onde esse idioma é falado e escrito por maior número de pessoas.
A discussão não envolvia apenas aspectos ortográficos. Era um tipo de debate que lembrava aquele famoso diálogo entre Alice e Humpty-Dumpty, em Alice no País do Espelho, de Lewis Carroll. Diz o estranho e caricatural Humpty-Dumpty: "Quando eu uso uma palavra, ela passa a significar aquilo que eu quero que ela signifique". O que deixa Alice perplexa: "A questão é se você pode fazer uma mesma palavra significar coisas diferentes". Humpty-Dumpty põe um ponto final na discussão com uma frase que Maquiavel aplaudiria: "A questão é saber quem manda".
Será essa a questão? O Brasil foi acusado, nessa discussão, de criar um novo tipo de colonialismo, de se impor pela grafia, como já se havia imposto pelas novelas de tevê. O quanto há de verdade e o quanto há de paranóia nessa afirmação é absolutamente secundário. O que importa, ao contrário do que pensa o autocrático Humpty-Dumpty, é facilitar a vida das pessoas, sobretudo daquelas que estão tendo acesso ao idioma. Porque, convenhamos: não é fácil chegar ao português pela via da grafia. Alguém já disse que foi a Inglaterra que conquistou o mundo e não Portugal porque os ingleses não precisavam perder tempo acentuando palavras.
Temos acentos demais, regras demais. Ferreira Gullar sempre disse que a crase não foi feita para humilhar ninguém, mas o nosso grande poeta está enganado: a crase foi feita para humilhar, sim, para humilhar aqueles que não sabem usá-la - no Brasil, provavelmente a maioria da população. Intimidadas, as pessoas evitam escrever (e evitam ler). Agora os jovens estão voltando ao texto, graças à internet; não falta quem reclame: "Ah, mas eles escrevem tudo errado". Isso sim é que é um erro. Essas pessoas não se dão conta de que há uma seqüência na aproximação à palavra escrita: não escrever, escrever errado, escrever certo. Os jovens estão numa etapa de um processo que, bem-sucedido, os levará ao domínio da escrita.
Escrever certo é melhor; no mínimo evita incomodações, críticas e deboches. Claro, há convenções para isso, como há para tudo na vida. Imagino que algum veterano comunista deva ficar indignado com o fato de ser vermelho o sinal que obriga as pessoas a parar (se bem que os veteranos comunistas provavelmente já não estão mais em idade de dirigir), enquanto o integralista verde libera o trânsito. Mas não vale a pena perder tempo com essas considerações. É preciso simplificar e o acordo agora firmado por Portugal faz isso: acaba com o trema, com consoantes mudas, com o acento diferencial do "pára" forma verbal. Seria preciso simplificar ainda mais, mas estamos no caminho. Bons ventos sopram nas velas de nossos barcos. Estamos na rota e daqui a pouco vamos descobrir, todos os países juntos, o País da Simplicidade Linguística (sem trema nesse "Linguística").
Correio Braziliense (DF) 23/5/2008