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Jornalismo é História

 

Mais antigo diário em circulação ininterrupta na América Latina ganhou publicação comemorativa recentemente


Anos atrás resolvi escrever um romance biográfico sobre Oswaldo Cruz, o fundador da saúde brasileira, cuja trajetória científica e humana é absolutamente fascinante. Não seria, como logo constatei, uma tarefa fácil.


Embora se trate de uma figura histórica ainda recente (morreu em 1917) e muito conhecida, sobretudo na área de saúde pública, quase toda a documentação sobre sua vida e seu trabalho encontra-se no Rio. Para lá me dirigi, pois. Primeiro trabalhei afanosamente na Fundação Oswaldo Cruz, onde está o arquivo do sanitarista. Mas eu queria ter também uma idéia de como essa polêmica figura tinha sido vista por seus contemporâneos. Fui então à Biblioteca Nacional e comecei a consultar os jornais da época.


Queria saber principalmente sobre a Revolta da Vacina (1904), uma rebelião popular desencadeada pela vacinação obrigatória contra a varíola. Um jornal revelou-se particularmente informativo: o Jornal do Commercio, que, não por acaso, é o mais antigo diário em circulação ininterrupta na América Latina.


Como o nome indica (e não é único: há um Jornal do Commercio em Recife e o Jornal do Comércio em Porto Alegre), está voltado para o noticiário econômico, mas, como acontece com outros jornais desse tipo (exemplo: o respeitável Financial Times), é uma fonte confiável de informações gerais. Teve entre seus colaboradores Rui Barbosa, o Visconde de Taunay, Afonso Celso, o Barão do Rio Branco. Em 2007, o Jornal do Commercio completou 180 anos, período durante o qual cobriu a história do Brasil. De D.Pedro I a Luiz Inácio Lula da Silva é o subtítulo do livro que descreve essa trajetória, 180 Anos do Jornal do Commercio (editora Quorum), de autoria de Cícero Sandroni.


Ninguém mais autorizado para fazê-lo. O paulista Sandroni formou-se em jornalismo no Rio (onde veio a residir) e trabalhou nos mais importantes jornais cariocas: Tribuna da Imprensa, Correio da Manhã, Diário de Notícias, Jornal do Brasil, O Globo.


Teve uma breve experiência política durante o governo João Goulart e chegou a presidir o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos, cargo do qual foi afastado pelo golpe militar de 1964. Retornou ao jornalismo e fundou a Edinova, que lançou importantes obras da literatura latino-americana e do então muito influente nouveau roman. Cícero também criou uma influente revista literária, Ficção, contando inclusive com a contribuição de escritores gaúchos: Sergio Faraco, Tania Faillace e eu próprio. Em 1974, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo e tornou-se diretor-adjunto do Jornal do Commercio. É autor de vários livros de ficção e nãoficção: O Diabo só Chega ao Meio-dia (contos, Nova Fronteira, 1985), O Vidro no Brasil (ensaio histórico, Objetiva, 1989), Austregésilo de Athayde, o Século de um Liberal (Agir, 1998), Cosme Velho (ensaio literário sobre o bairro em que viveu Machado de Assis, Relume Dumará, 1999), 50 anos de O Dia (história do jornal, 2002), O Peixe de Amarna (romance, Record, 2003). E é, claro, o presidente da Academia Brasileira de Letras, cargo que assumiu no final de 2007.


O Jornal do Commercio surgiu num importante momento da vida brasileira. Com a chegada da Família Real, o Brasil mudou: abertura dos portos, estímulo às atividades industriais, criação de bancos, ativação do comércio, criação de cursos superiores. O país buscava adequar-se à nova era do liberalismo econômico e político trazido pela revolução industrial na Inglaterra e pelas revoluções francesa e americana.


É então que Pierre-René-François Plancher de la Noé, famoso divulgador do pensamento iluminista na França (e perseguido por isso) chega ao Brasil e funda o Jornal do Commercio (cópia do francês Journal du Commerce). No início restringiuse à área econômica; mas em 1828, e atendendo a pedidos, mudou o título para Jornal do Commercio, Folha Commercial e Política, ampliando a gama de informações.


Era, claro, um jornal conservador, mas influente, formando opinião, ditando hábitos e costumes. É exemplar o comentário que o jornal fez, a 16 de novembro de 1904, sobre a Revolta da Vacina. Critica os revoltos, cujos meios de protesto "são os menos sensatos que se pode imaginar", levando à destruição da iluminação pública, interrupção do tráfego, "causando com isto maiores transtornos às próprias classes populares do que ao governo".


Mas reconhece também que a vacinação obrigatória é uma manifestação da "ingerência, já pesadíssima, da autoridade pública no seio da família e da liberdade individual".


É a clássica posição que os americanos denominam de "one hand, on the other hand", ou seja, de um lado devemos considerar tais e quais argumentos, mas de outro lado devemos considerar também tais e quais argumentos. Uma no cravo, outra na ferradura, mas pelo menos os dois lados da questão são expostos.


Jornais retratam a realidade diária; mas quando o fazem ao longo do tempo, acabam funcionando como peças documentais de primeira ordem. Jornalismo, mostra Cícero Sandroni, é História com H maiúsculo.


Zero Hora (RS) 3/5/2008