O Kzuka (KZK) da semana passada fez uma matéria sobre Ramona, a personagem vivida por Marcela Barrozo na novela Duas Caras, uma guria que, diz o texto, dedica-se aos estudos muito mais que seus colegas de classe. Comentário da jornalista Júlia Dócolas: "Foi-se o tempo em que ser estudioso era ser nerd. Os primeiros da turma ganharam espaço e hoje ditam moda". Coincidentemente, a Veja da semana retrasada também trazia uma matéria sobre o assunto, comentando um livro recém-lançado nos Estados Unidos, escrito pelo psicólogo David Anderegg e que se intitula Nerds: Who They Are and Why We Need More of Them (Nerds: Quem São e Por que Precisamos Mais Deles). Aliás, nessa última matéria eu descobri, afinal, o que significa a palavra nerd. É uma alusão aos jovens cientistas que trabalhavam no Northern Electric do Canadá, importante laboratório tecnológico, mais precisamente na divisão de pesquisa e desenvolvimento (research and development). Northern Electric Research and Development: daí veio a sigla.
Pela descrição da fauna nérdica, descobri que também fui um nerd. Só que naquela época pré-histórica não se usava essa denominação. A gente era caxias - uma alusão, acho, ao Duque de Caxias, tenaz chefe militar que derrotou várias revoltas e revoluções pelo Brasil afora. E a gente era, mais vulgarmente, CDF, abreviatura de c...de-ferro. Aí a alusão era óbvia: para agüentar as longas horas sentado à mesa de estudo, só mesmo um trazeiro de ferro.
Eu era caxias, eu era CDF. Não me envergonho disso, ao contrário, tenho saudades dessa época. Tratava-se de um destino traçado. Em primeiro lugar, era filho de uma mãe professora e de um pai fanático por trabalho, um homem que levantava às cinco da manhã para ir para o batente. E cursei um colégio que era famoso pelo nível de exigência, o Rosário. Para vocês terem uma idéia, em nossa caderneta escolar figuravam, a cada semana, dois tipos de nota: comportamento e aplicação. Tirar um duplo 10 em comportamento e aplicação era o sonho dos nerds rosarienses. E éramos constantemente estimulados a isso. Quando chegava a época das férias de julho, recebíamos um dever para fazer em casa. Houve um ano em que esse dever era uma redação - em latim, idioma ensinado em todas as séries do curso ginasial. Pois bem, eu fiz 50 redações. Cinqüenta. Cinco zero. Lembram de Cícero, aquele famoso romano? Pois acho que nem em toda sua vida ele fez 50 redações em latim.
Vocês perguntarão: mas de que adianta fazer 50 redações em latim? No meu caso, adiantou muito porque significava mergulhar nas próprias origens do idioma português em busca de uma intimidade com as palavras que, ao fim e ao cabo, é o sonho de todo escritor. Mas não vou enveredar por esse tipo de explicação. Eu fazia as redações em latim simplesmente porque gostava das redações de latim, assim como gostava dos teoremas de matemática, da análise lógica e sintática e até da crase - sim, eu adorava a crase. Já estou vendo vocês bradando, indignados: mas que espécie de perversão é essa? Não sei. Para dizer a verdade, não sei. Só sei que era muito bom ser nerd, coisa que agora está sendo constatada. O mundo é dos Nets? Pode ser. Mas o mundo também é dos nerds, no Canadá, no Brasil ou em qualquer outro lugar. Este mundo e o outro. No Juízo Final, me apresentarei diante de Jeová com minha caderneta escolar (10 em comportamento, 10 em aplicação) e minhas 50 redações em latim. E aí, haja anjo para cantar hosanas.
Zero Hora (RS) 23/3/2008