RIO DE JANEIRO - Era uma Quinta-Feira Santa na velha catedral do Rio, hoje desativada. Como seminarista, estava no coro da capela principal, ao lado dos cônegos e monsenhores, que formavam uma espécie de conselho administrativo da arquidiocese.
O cerimonial prescrevia o Ofício de Trevas, um enorme candelabro (um menorá) de sete velas iluminando o ventre da catedral, cujas luzes ficavam desligadas. Recitavam-se sete salmos, e a cada um que terminava o celebrante apagava uma das velas. Na última, as trevas faziam o seu ofício.
Havia monsenhores idosos, caindo pelas tabelas. Um deles não resistiu à progressiva penumbra e cochilou. Do cochilo passou ao sono, e do sono despencou da sua bancada, desabando em cima de um colega. Pensamos que fosse o Demônio perturbando a cerimônia. Satanás gosta de estragar festas ou promove festa paralela que bagunça tudo.
Na confusão, e até que as luzes fossem acesas, houve literalmente o diabo. Fica difícil, tantos anos depois, estabelecer a cronologia dos fatos. Não sei se fugi e gritei ou se primeiro gritei e depois fugi. Talvez tenha feito as duas coisas ao mesmo tempo. O fato é que, quando a luz voltou, eu estava em cima de um dos altares laterais. E não estava sozinho. Um velho monsenhor, tradutor de Virgílio, Horácio e Ovídio, estava ao meu lado, tão ou mais apavorado do que eu.
Tudo terminou sem mortos nem feridos. A cerimônia continuou, não sem antes quase todos tomarem uma reconfortante água com açúcar providenciada por caridoso sacristão.
Já que falei em diabo, volto a falar nele. Por que diabo fui lembrar esta cena na catedral? Desconfio que Satanás, mais uma vez, deseja complicar meus caminhos. E eu nem poderei fugir dele, buscando refúgio num altar inexistente.
Folha de S. Paulo (SP) 20/3/2008