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O semeador cansado

 

Mais tarde talvez receba um telefonema, não há mais o almoço com os pais, mas há os chatos


O HOMEM acordará e sentirá na garganta seu gosto mais denso e mais triste. Não haverá espanto em seus olhos fatigados, nem ira em suas mãos crispadas. Enfrentará com pasmo mais este dia, mais este aniversário. "Felizmente, os parentes e os escassos amigos não sabem." A rigor, já ninguém mais sabe, ele mesmo às vezes se surpreende confuso -"não, não faço anos, há muito que tenho uma idade compacta, imensurável, indivisa: sou eterno na minha insignificância humana".


Vê no espelho o rosto de sempre que recebe uma camada de espuma. Pensa em mudar de gilete, "hoje, talvez, mereça uma gilete nova", mas nem isso merece mais, vai mesmo com a antiga, para quê ou por quê ficar melhor barbeado? Com barba ou sem barba a escuridão dos olhos, quase sem luz, a aspereza da boca, a falta de sentido do sorriso serão os mesmos e mesmo será o funeral de suas esperanças e o suportar de suas realidades. Quanto a barba em si, se não deixar que cresça, ela crescerá sozinha.


Em anos distantes, aquela era a hora de abrir os presentes. Por pior que estivesse a vida, havia sempre (e pelo menos) um embrulho festivo em cima da cama ou na mesa de seu escritório. Agora não haverá o presente, de há muito que nem mesmo ele é um presente -e sabe que o futuro não lhe faz falta e que o próprio passado é indispensável agora.


"Bom, menos um aniversário, menos um despertar, menos uma amolação." Mais tarde talvez receba um telefonema, não há mais o almoço com os pais, mas os chatos inexoráveis e pontuais (nada mais pontual do que um chato) não se esquecerão de dar ou de mandar o abraço. De qualquer forma, sente-se melhor assim, sem responsabilidade e sem a glória que nunca teve, não terá de agradecer a ninguém.


Lá fora, o dia não tomará conhecimento de seu drama particular. É um dia comum, feito para uma humanidade comum, a luz comum batendo na praia comum -e o mar. Por um momento sente-se preso a algum lugar, à sua cidade, ao seu mundo. O mar o retivera sempre, muralha intransponível a impedir avanços, cárcere movediço a impedir fugas. Sua agitação, então, coube num estreito espaço de estreitas ruas e estreitas pessoas. Ele mesmo é um estreito. Lembra o monólogo do Fausto, "um estreito espaço basta quando o abismo devorou todas as esperanças e a gente chora continuamente os bens que não perdeu". Mais tarde, se houver tempo, lerá algumas páginas de Goethe na tradução de Gerard de Nerval.


"Sou um homem que não vai para nenhum lugar, para nenhuma experiência além do amor e da carne." E lembra, como consolo, que pior que não ter iniciado a viagem, é não ter podido chegar, chegar matinalmente, como deve ser bom chegar.


Súbito, um pouco de ternura começa a amolecer dentro dele, flor que amolece junto a um cadáver. Mas não importa mais. Com carinho ou sem ele, com loucura ou sem ela, há que ir para qualquer lugar e, talvez, um lugar qualquer seja a sua frente, o seu rumo. Chegando ou não chegando dá na mesma, fica a impressão de não ter saído do lugar.


Apesar do bastante que já viveu, não adquiriu ainda aquela distância desejada de fazer mais um ano sem saber, sempre invejou aqueles velhos nos asilos que ignoram a própria idade, o dia em que nasceram, se é que nasceram um dia. Antes de morrer, um tio-avô que gostava de decifrar charadas perguntou aos filhos reunidos em torno de seu leito se era sábado ou domingo. Quando soube que era uma quinta-feira, lançou a última charada de sua vida: "Ainda bem!".


Não gosta de charadas, detesta enigmas. No seu caso, há que continuar lúcido, se possível de fronte erguida, recebendo nos olhos nus e desarmados o mundo e os outros. Ele é também um outro para os outros: tudo sempre na mesma. Está puro e só, mas enfrenta a luz que desce sobre seus ombros, vergando-o sob o peso de mais um ano.


Então -e mais uma vez- o mar.


Olha as ondas e se distrai, vendo aquele monstro que o encarcera deitar na praia suas grades de espuma, espalhando ondas como sementes na areia, com o gesto imenso e circular de um semeador cansado.


Folha de S. Paulo (SP) 14/3/2008