Há os maldosos que dizem que eu deveria sempre encerrar esta coluna com a frase 'desculpem qualquer coisa'. Assistir-lhes-á, talvez, razão, como essa mesóclise aí poderá corroborar. Mas começar com 'desculpem qualquer coisa' nunca me havia ocorrido até hoje, como está acontecendo agora. Bem verdade que posso gabar-me em mais uma vez ingressar na Galeria dos Heróis Desconhecidos do Jornalismo, informando que, no momento, me encontro acometido de crudelíssima virose e obrigado a violentar o corpo mole, a mente rateante e a vontade de cair na cama para não deixar de cumprir o dever profissional. Mas o leitor não tem nada com isso e, virose ou não virose, é seu direito encontrar no mesmo lugar a coluna que espera, nem que seja para amassá-la como todo domingo, ou novamente declarar no boteco que não vai perder tempo em ler porcaria. O dever do jornalista é multifacetado e até essas pequenas alegrias ele deve, quando pode, proporcionar sem ver a quem, em mundo tão eivado de tragédias e assombrações.
Não, não compareci a nenhum consultório médico para saber que estou com uma virose. Embora para sempre enredado pela invencível malha médica, tenho procurado seguir, na medida do possível, o conselho que um de seus próprios membros me deu. Era como ele mesmo agia. 'Quando seu médico disser que quer ver você', ensinou ele, 'pegue uma fotografia boa e mande para ele. Hoje em dia, com as câmeras digitais, é moleza. Se ele for do tipo meticuloso, você pode até mandar uma foto diferente todo dia.' É verdade, a informática revolucionou a medicina de mil maneiras, até com essa conquista para mim espetacular.
Virose é uma enfermidade produzida por vírus, explica o dicionário. Diz, porém, a nossa experiência que virose é qualquer condição orgânica que nos incomoda e cuja origem o médico não consegue encontrar. Sentimos um mal-estar mais ou menos persistente, vamos ao médico. Ele então nos aplica a medicina moderna, que consiste em nos enviar para a Nasa, ou seja, a um número aparentemente infinito e crescentemente especializado de laboratórios e clínicas, para fazermos exames de nomes extraterrestres. Vamos aos laboratórios, somos submetidos a toda sorte de sevícias e humilhações (entre as quais avulta referirem-se no diminutivo a todas as partes do nosso corpo, inclusive as nossas vergonhas, o que, ao menos no caso dos homens, pode ser ofensivo ou mesmo traumático) e ao médico voltamos, geralmente sem estar sentindo mais nada. Ele folheia os laudos em cinco segundos, pronuncia-nos em excelente condição para nossa idade e nos comunica que fomos vítimas de uma virose. Ouvimos a habitual admonição quanto ao nosso colesterol, somos polidamente descritos como glutões grosseiros e faltos de caráter e voltamos para a mesma vida besta de sempre, só que com o currículo enriquecido com mais 18 picadas, uma tomografia, uma ressonância magnética, uma endoscopia e talvez dezenas de outras experiências que o pudor e o auto-respeito mandam tentar esquecer.
Mas minha virose, desta vez, foi diagnosticada no boteco mesmo, por um dos muitos médicos que o freqüentam. Ele me deu uma aulazinha sobre o assunto e me perguntou se me vacino periodicamente contra gripe, como aconselha minha condição de idoso e minha aparente suscetibilidade a viroses. Respondi que sim, resignei-me, mudamos de assunto. E tudo, com exceção da virose, desapareceria ali mesmo, se não tivesse surgido um inesperado debate, partido de um senhor que estava sentado a uma mesa próxima da nossa. Desculpou-se por se meter na conversa e fazia questão de ressalvar que não iria manifestar falta de confiança no médico que falara, mas 'neles'. Não ficou bem claro quem são 'eles' e aí deixo com vocês a identificação, reproduzo somente os brados.
- Eu não me vacino! Eles são capazes de tudo! Eu tenho um grupo de estudos que já chegou à conclusão de que eles querem é resolver o déficit da Previdência! E a melhor maneira é botando um negócio na vacina dos velhos! Há dezenas e dezenas de opções ao alcance deles! O velho otário vai lá no posto, toma a vacina e aí tem um treco e abotoa o paletó rapidinho! Aqui pra eles, nenhum de nós toma a vacina!
- Não, desculpe, isso não é verdade. O senhor tem visto as campanhas todos os anos e não morreu velho nenhum por causa da vacina.
- Por enquanto! Isso é até o pessoal pegar confiança. Aí, quando menos se esperar - créu! - não vai sobrar um velho, pode escrever. E aí eles abrem uma CPI, falam pra cacete e o resultado vai ser criarem um imposto sobre o dinheiro que os velhos deixarem e vai aparecer uma Operação Matusalém para pegar a quadrilha que quer tomar o dinheiro deixado pelos velhos e...
- Não, desculpe outra vez, o senhor deve estar brincando, isso é completamente implausível.
- Implausível? Implausível? Onde é que o senhor mora, tem alguma coisa implausível aqui? No dia em que alguma sacanagem for implausível no Brasil, é porque é implausível no Universo, só assim! Aqui não tem nada de implausível, nem impossível! Eu não tomo essa vacina, não tem quem me faça! Eu tenho é 76 anos desta merda e já vi tudo acontecer aqui, não tem quem me faça tomar vacina deles, nem pra frieira do dedão! Eles é que procurem armar outra, porque pra mim essa não cola!
Lamentável desconfiança, triste sinal dos tempos. Claro que vou continuar a tomar a vacina. Só que, da próxima vez, já mais para perto do fim da campanha, para ver o que aconteceu no começo.
O Globo (RJ) 9/3/2008