A RETIRADA DA LAGUNA
(Capítulo I)
Formação de um corpo de exército destinado a atuar, pelo norte, sobre o Alto Paraguai. Distâncias e dificuldades de organização.
Para dar uma ideia, algum tanto exata, dos lugares onde, em 1867, ocorreram os acontecimentos cuja narrativa se vai ler, convém lembrar que, ao finalizar de 1864, havendo o Paraguai atacado e invadido, simultaneamente, o Império do Brasil e a República Argentina, achava-se, decorridos dois anos, após tal investida, reduzido a defender o próprio território, invadido do lado do sul pelas forças conjuntas das duas potências aliadas, a quem coadjuvava pequeno contingente de tropas da República do Uruguai. Ao sul oferecia-se o caudaloso Paraguai mais vantagens à expugnação da fortaleza de Humaitá, que, pela posição especial, se convertera na chave estratégica do país, assumindo, nesta porfia encarniçada, a importância de Sebastopol, na campanha da Crimeia.
Ao norte, do lado de Mato Grosso, eram as operações infinitamente mais difíceis, não só porque ocorriam a milhares de quilômetros do litoral atlântico, onde se concentram todos os recursos do Brasil, como ainda por causa das inundações do rio Paraguai, que, cortando na parte superior do curso terras baixas e planas, transborda anualmente, a submergir então regiões extensíssimas. Consistia o plano de ataque mais natural em subir as águas do Paraguai, do lado da Argentina, até o coração da república inimiga e, do Brasil, descê-las a partir de Cuiabá, a capital mato-grossense que os paraguaios não haviam ocupado.
Teria impedido à guerra arrastar-se durante cinco anos consecutivos esta conjugação de esforços simultâneos. Mas era-lhe a realização extraordinariamente difícil, devido às enormes distâncias a transpor. Basta lançar os olhos sobre um mapa da América do Sul e examinar o interior do Brasil, em grande parte desabitado, para que qualquer observador de tal se convença logo.
No momento em que se enceta esta narrativa, estava, pois, a atenção geral das potências aliadas quase exclusivamente voltada para o sul, para as operações de guerra, travadas em torno de Curupaiti e Humaitá. Quanto ao plano primitivo, fora ele mais ou menos abandonado; quando muito ia servir de pretexto a que se infligissem as mais terríveis provações a uma pequena coluna expedicionária, quase perdida nos imensos e desertos sertões brasileiros.
Em 1865 - ao arrebentar a guerra que Francisco Solano Lopez, o presidente do Paraguai, na América do Sul suscitara sem maior motivo do que os ditames da ambição pessoal; quando muito a invocar o vão pretexto da manutenção do equilíbrio internacional - o Brasil, obrigado a defender honra e direitos, dispôs-se, denodadamente, para a luta. A fim de reagir contra o inimigo, em todos os pontos onde podia enfrentá-lo, o plano da invasão do Paraguai setentrional acudiu naturalmente a todos os espíritos; preparou-se uma expedição para este fim.
Não foi infelizmente este projeto de diversão realizado nas proporções que sua importância exigia; e, mais infelizmente ainda, os contingentes acessórios sobre os quais contávamos, para avolumar o corpo de exército expedicionário, durante a longa jornada através de São Paulo e Minas Gerais, falharam em grande parte ou desapareceram devido à cruel epidemia de varíola e às deserções que esta provocou. Marchou-se lentamente: provinha a demora de muitas causas, sobretudo da dificuldade do abastecimento de víveres.
Foi somente em julho (partira do Rio de Janeiro em abril) que a coluna pôde organizar-se em Uberaba, chegando-lhe os quadros a atingir cerca de três mil homens. Reforçavam-na vários batalhões que, de Ouro Preto, trouxera o coronel José Antônio da Fonseca Galvão.
Não sendo esta força ainda suficiente para uma ofensiva, seu comandante, Manuel Pedro Drago, encaminhou-a para a capital de Mato Grosso, a fim de avolumá-la. Assim se adiantou em direção ao noroeste, até as margens do Paranaíba, quando ali recebeu peremptórias ordens do governo, levando-lhe instruções formais de marchar para o distrito de Miranda, então ocupado pelo inimigo.
Tal injunção, no ponto a que chegáramos, impunha como forçado corolário obrigar-nos a descer em direção ao rio Coxim e a contornar em seguida a serra de Maracaju, por sua base ocidental, anualmente invadida pelas águas do Paraguai. Assim, pois, estava a expedição condenada a atravessar extensíssima região empestada pelas febres palustres.
A 20 de dezembro atingiu o Coxim, ainda sob o comando do coronel Galvão, recentemente investido da chefia e, pouco depois, graduado em brigadeiro.
Embora sem valor algum estratégico, tinha pelo menos o acampamento do Coxim uma altitude que lhe garantia a salubridade. Não tardou, porém, que a enchente, havendo-o ilhado e isolado, ali passasse à força pelas mais cruéis privações, sofrendo até fome.
Após longas hesitações, forçoso se tornou romper ao acaso, através do pestilento pantanal, onde a coluna foi desde o princípio provada pelas febres. Uma das primeiras vítimas veio a ser o próprio e infeliz chefe, falecido à margem do rio Negro. Afinal, arrastando-se penosamente, conseguiu atingir a povoação de Miranda a 396 quilômetros para o sul. Aí uma epidemia climática de novo gênero, a paralisia reflexa, ou beribéri, acabrunhou-a, dizimando-a ainda mais. Dois anos quase haviam decorrido, desde a nossa partida do Rio de Janeiro. Lentamente descrevêramos imenso circuito de dois mil cento e doze quilômetros. E já um terço de nossa gente perecera
(A retirada da Laguna. Episódio da Guerra do Paraguai, traduzido da 5ª edição francesa por Afonso d’Escragnole Taunay, 1928.)
A CASA DO MINEIRO
“Está a ceia na mesa. Torne o bom acolhimento desculpável o mau passadio.”
WALTER SCOTT, Ivanhoé.
Quando assomaram os dois viajantes à entrada do terreiro que rodeava a vivenda de Pereira, saíram-lhes ao encontro quatro ou cinco cães altos e magros, que aos pulos saudaram o dono da casa com uma cainçada de alegria.
Puseram-se algumas galinhas a correr atarantadas, ao passo que dois galos, já empoleirados na cumeeira da morada, bradavam novidade e uns porcos e bacorinhos aqui e acolá se erguiam dentre palhas de milho e estremunhados olhavam para os recém-chegados com olhos pequenos e cheios de sono.
Do interior da habitação, não tardou a sair uma preta idosa, mal vestida, trazendo atado à cabeça um pano branco de algodão, cujas pontas pendiam até ao meio das costas.
- Olá, Maria Conga - perguntou Pereira - que há de novo por cá?
- A bênção, meu senhor pediu a escrava chegando-se com alguma lentidão.
- Deus te faça santa respondeu o mineiro. Como vai a menina? Nocência?
- Nhã está com sezão.
- Isto sei eu, rapariga de Cristo; mas como passou ela de trasanteontem para cá?
Todo o dia, vindo a hora, nhã bate o queixo, nhor-sim.
Está bem... É que o mal ainda não abrandou... Daqui a pouco, veremos. E a janta? ... Está pronta? Venho varado de fome. Que diz, sr. Cirino? indagou ele voltando-se para o companheiro.
- Não se me dava também de comer alguma coisa. Temos razão para...
- Pois então interrompeu Pereira ponha pé no chão e pise forte, que o terreno é nosso. Minha casa, já lho disse, é pobre, mas bastante farta e a ninguém fica fechada.
Deu logo o exemplo, e descavalgou do cavalinho zambro, o qual foi por si correndo em direção a uma dependência da casa com formas de estrebaria.
Apeou-se também Cirino, mas, ao penetrar numa espécie de alpendre de palha que ensombrava a frente toda, mostrou repentina e viva contrariedade no gesto e na fisionomia.
- Ora, sr. Pereira exclamou ele batendo com o tacão da bota num sabugo de milho só agora é que me lembro que as minhas cargas vão todas tomar caminho do Leal e aqui me deixam sem roupa, nem medicamentos. Que maçada! Devíamos ter esperado na boca da sua picada.
Respondeu-lhe o mineiro todo desfeito em expansivo riso:
- Olé, pois o doutor é tão novato assim em viagens? Então pensa que lá não deixei aviso seguro à sua gente? Não se lembra de um ramo verde que pus bem no meio da estrada real?
- É verdade confirmou Cirino.
- E então? Daqui a pouco a sua camaradagem está batendo o nosso rasto. Entremos, que a fome já vai apertando.
Consistia a morada de Pereira num casarão vasto e baixo, coberto de sapé, com uma porta larga entre duas janelas muito estreitas e mal abertas. Na parede da frente que, talvez com o peso da coberta, bojava sensivelmente fora da vertical, grandes rachas longitudinais mostravam a urgência de sérias reparações em toda aquela obra feita de terra amassada e grades de pau-a-pique.
Ao oitão da direita existia encostado um grande paiol construído de troncos de palmeiras, por entre os quais iam caindo as espigas de milho, com o contínuo fossar dos porquinhos, que dali não arredavam pé.
Corrido na frente de toda a vivenda, via-se um alpendre de palha de buriti, sustentado por grossas taquaras, ligeiro apêndice acrescentado por ocasião de alguma passada festa, em que o número de convidados ultrapassara os limites de abrigo da hospitaleira habitação.
Internamente era ela dividida em dois lanços: um, todo fechado, com exceção da porta por onde se entrava, e que constituía o cômodo destinado aos hóspedes; outro, à retaguarda, pertencia à família, ficando portanto completamente vedado às vistas dos estranhos e sem comunicação interna com o compartimento da frente.
Era de barro compacto e socado o chão desta sala, vendo-se nele sinais de que às vezes ali se acendia fogo: pelo que estavam o sapé do forro e o ripamento revestidos de luzidia e tênue camada de picumã que lhes dava brilho singular, como se tudo houvera sido jacarandá envernizado.
- Isto aqui disse Pereira penetrando na sala e sentando-se numa tripeça de pau não é meu, é de quem me procura. Poucos vêm cá decerto parar, mas enfim é sempre bom cantar com eles... Minha gente mora na dependência dos fundos.
E apontou para a parede fronteira à porta de entrada, fazendo um gesto para mostrar que a casa se estendia além.
- Sr. Pereira - disse Cirino recostando-se a uma sólida marquesa não se incomode comigo de maneira alguma... Faça de conta que aqui não há ninguém.
- Pois então - retorquiu o mineiro - deite-se um pouco, enquanto vou lá dentro ver as novidades. A hora é mais de comer, do que de cochilar; mas espere deitadinho e a gosto, o que é sempre mais cômodo do que ficar de pé ou sentado.
Não desprezou o hóspede o convite. Tirou o pala, puxou as botas e, cruzando-as, fez dos canos travesseiros, em que descansou a cabeça.
Quem se coloca em posição horizontal, depois de vencidas umas estiradas léguas, adormece com certeza. Depressa veio, pois, o sono cerrar as pálpebras do recém-chegado e intumescer-lhe o peito com sossegada respiração.
Dormiu talvez hora e meia, e mais houvera dormido, se não fosse acordado pelo tropel de animais que paravam e por grita de gente a pôr cargas em terra.
Assomou o sr. Pereira à porta com ar jovial.
- Então que lhe disse eu?
- De fato; estou agora sossegado.
- E o sr. tomou uma boa data de sono.
- Quem sabe uma hora?
- Boa dúvida, senão mais. Fiquei todo este tempo ao lado de Nocência, que de frio batia o queixo, como se estivesse agora em Ouro Preto, quando cai geada na rua.
- Então não vai melhor?
- Qual!... Depois que o sr. tiver comido, há de ir vê-la. Está, pobrezinha, tão desfeita que parece doente de uns dois meses atrás.
- Felizmente - observou Cirino com alguma enfatuação aqui estou eu para pô-la de pé em pouco tempo.
- Deus o ouça - disse Pereira com verdadeira unção.
- Patrícios! Oh! gente! - gritou ele em seguida para os dois camaradas chegados de pouco vão mecês sestear naquele rancho, ali. Perto há boa água, e lenha é o que não falta: basta estender o braço. Olhem, dêem ração de fartar os animais. Aproveitem o milho, enquanto há: é a sustância desses bichos. Aqui, vendo-o baratinho. Um atilho por um cobre e não são espigas chochas, nem de grão soboró. Eh! Lá! Maria Conga, vamos com isso!... janta na mesa!...
Foram o chamado e as indicações de Pereira cumpridas sem demora.
Apareceu a velha escrava, que estendeu em larga e mal aplainada mesa uma toalha de algodão grosseira mas muito alva, sobre a qual derramou duas boas cuias de farinha de milho: depois, emborcou um prato fundo de louça azul, e ao lado colocou uma colher e um garfo de metal.
- Sente-se, doutor - disse Pereira para Cirino - agora não manduco com mecê, porque já petisquei lá dentro. Desculpe se não achar a comida do seu agrado.
Vinha nesse momento entrando Maria Conga com dois pratos bem cheios e fumegantes, um de feijão-cavalo, outro de arroz.
- E as ervas? - perguntou Pereira. - Não há?
- Nhor-sim. Eu trago já respondeu a preta que com efeito voltou daí a pouco.
Tornou o mineiro a desculpar-se da insuficiência e mau preparo da comida.
- Não lhe dou hoje lombo de porco; mas o prometido não cai em esquecimento. Isto lhe posso assegurar.
- Estou muito contente com o que há protestou com sinceridade Cirino.
E, de fato, pelo modo por que começou a comer, repetindo amiudadas vezes dos pratos, deu evidentes mostras de que falava inteira verdade.
- Maria - disse Pereira para a escrava que se fora colocar a alguma distância da mesa com os braços cruzados traz agora mel e café com doce.
Vieram a sobremesa e a xícara de café que completaram a refeição.
- Ah! - exclamou Cirino com patente satisfação estirando os braços fiquei que nem um ovo. O feijão estava de patente. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo, que me deu este bom agasalho.
- Amém! - respondeu Pereira.
(Inocência, cap. IV, 1872.)
O ENCILHAMENTO
Embora de inverno, pungia o sol esperto, um tanto cáustico.
Pouco, porém, se lhe importava o calor à multidão que enchia, barulhenta e agitada, todo o trecho final da rua da Alfândega até à de Primeiro de Março, transbordando pelos dois ramos laterais da apertada e torta viela, mais que rua, chamada da Candelária, nos arredores do edifício do Banco do Brasil.
Debalde apitavam impacientes e estrídulos os bondes a pedirem passagem; debalde praguejavam, vociferando insolentes, os carroceiros e manejando a custo no meio do povo os pesados veículos; ninguém quase se abalava para os evitar na compacta massa, que ora se intumescia e oscilava com movimentos isoméricos e combinados, ora de repente se dividia, rareava e se espalhava para ir adiante, logo e logo, formar novos e mais densos agrupamentos.
De vez em quando, neles se abriam sinuosos sulcos, por onde, coleando, se esgueiravam azafamados, ligeiros e jeitosos, corretores e, sobretudo, zangões, estes em número incalculável, de todas as idades, rubros, banhados em suor, com o chapéu caído sobre a nuca e o lenço em torno do pescoço como babadouro, a gritarem compro, vendo, sem particularizarem o que pretendiam comprar ou vender. “Duzentas Repúblicas”, anunciava um com insistência e esganiçada grita. “Quanto?” “83.” “Estão fechadas.” E rápidas se escreviam as notas em pedacinhos de papel ou nos punhos postiços da camisa, cheios já de algarismos, enquanto mil sinais trocados no ar, mal esboçados, simples piscadelas de olho, encetavam grossas negociações ou de todo as concluíam.
Terrível o aperto, completos o acotovelamento e a igualdade; todas as classes da sociedade misturadas, confundidas, enoveladas, senadores, deputados, médicos de nota ou sem clínica, advogados bem reputados ou desprestigiosos, magistrados de fama, militares, um mundo de desconhecidos, magistrados de fama, militares, um mundo de desconhecidos, outros infelizmente demasiado conhecidos; homens vindos de todos os pontos do Brasil, alguns até das velhas bolsas da Europa, espertos, ativos, de modos ora insinuantes, ora imperiosos como que de fidalgos deslocados do seu meio habitual, afeitos a todos os negócios, prontos para todas as transações havidas e por haver; gente chegada de fresco dos Estados com a feição ainda tímida e acaipirada de provincianos e gestos de quem mal domina surpresas e medos imensos, outros veteranos já naquele fogo de nova espécie, gabolas, farfalhantes, rindo alto, contando proezas e os mais arriscados lances; políticos de posição, há pouco, afirmada pela cartola solene, sobrecasaca abotoada e ademanes compassados, agora de chapéu mole, paletó saco e maneiras familiares, a correrem, com o sorriso estereotipado das dançarinas, atrás dos possíveis fregueses, em penosa competência com caixeirinhos, verdadeiros meninos atirados em cheio na voragem da bolsa, crianças quase, a levarem, nas pequeninas mãos nervosamente fechadas, grossos maços de notas amarrados por cordéis brancos em cruz, contos e contos de réis.
Por sobre todos pairava uma ansiedade opressora, deliqüescente, de esperanças e receios, como que fluido indefinível, elétrico, febril, intenso, que, emergindo do seio da multidão, a envolvia em pesada atmosfera com prenúncios e flutuações de temporal certo, inevitável, mas ainda distante, longe, bem longe a fome do ouro, a sede da riqueza, a sofreguidão do luxo, da posse, do desperdício, da ostentação, do triunfo, tudo isso depressa, muito depressa, de um dia para outro!
Também nos rostos, quase todos alegres e desfeitos em riso, alguns não sombrios mas preocupados e sérios, se expandia uma alacridade contrafeita, reflexo de sentimentos encontrados, a consciência de se estar empenhado até aos olhos num brinquedo, quando não jogo, perigoso, travado de riscos e desastres iminentes, mas atraente, sedutor, irresistível.
Era o Encilhamento, palavra quase genial do povo, adaptada da linguagem característica do Sport, local em que se dá a última demão aos cavalos de corrida antes de atirá-los à raia da concorrência e forçá-los, ofegantes e em supremos esforços, a pleitearem o prêmio da vitória. E, quantos, montados por hábeis jockeys, cuja existência se passa a fazê-los ganhar ou perder à vontade, quantos não tinham de ficar em meio da arena, vencidos, humilhados, arquejantes, o pelo alagado de mortal suor, a curtirem as vergonhas e as angústias da derrota, com as pernas a tremer, o coração a estalar da vertiginosa carreira, para que um único, um só, o mais rápido, o mais feliz, ou o mais bem guiado pela trapaça do cavaleiro, atingisse a meta, e arrebatasse, entre delirantes aclamações, o ambicionado laurel, aproveitado em seus rebotalhos, quando muito, por mais dois ou três companheiros de glória hípica?!
Era o Encilhamento espécie de redemoinho fatal, de Maelstrom oceânico, abismo insondável, vórtice de indômita possança e invencível empuxo a que iam convergir, em desapoderada carreira, presas, avassaladas, inconscientes no repentino arroubo, as forças vivas do Brasil, representadas por economias quase seculares e de todo o tempo cautelosas, hesitantes. Dir-se-ia um desses faróis imensos, deslumbrantes, de encontro a cujos vidros inquebráveis, convexos, se atiram, nas sombras da noite e nos vaivéns da tempestade, grandes e misteriosas aves do oceano, para logo caírem malferidas, moribundas, ou sem vida e fulminadas sobre ásperos rochedos, na base das torres agigantadas.
Por ali rolava bamboleando ou piruetava nos ares como visão fantástica de voluptuosa acrobacia a Fortuna, levíssima nos movimentos felinos e nas inesperadas cabriolas, mas de aspecto pesadão, à maneira de uma rósea e carnuda barregã de Rubens, toda em gargalhadas, báquica, aos tombos, caprichosa, volúvel, com uma ponta de ebriedade, a oferecer o corpo todo nu, lascivo, os seios empinados e largos, o ventre vasto e roliço, presa enganosamente fácil de quantos ávidos, tresloucados, a quisessem empolgar e possuir. E a simples possibilidade de lhe merecer por acaso um só dos seus lúbricos sorrisos, quando mais não fosse, retinha naquela áurea paragem, em que se jogava às tontas, inúmeros papalvos e curiosos, de todo alheios a qualquer transação, como quem espera tirar a sorte grande sem comprar bilhetes de loteria.
Gatunos propriamente, batedores de carteira ou apalpadores de algibeira, poucos, bastante raros. Assinalado o dia, em que se ouvia o brado angustioso de “Pega ladrão!” “Lá se foi o meu relógio!” e, ao trilar dos apitos, acudiam com grande espalhafato, e logo de chanfalho em punho, soldados de polícia, aliás sem resultado para a garantia da propriedade em perigo e reconquista dos bens surripiados.
Tomava todos os visos de honesto labor o trabalho que se operava naquele atrito de interesses e ambições, por enquanto simpático, quase cordial e bonachão; e, pela imprensa, já haviam vozes autorizadas reclamado do honrado presidente da intendência a formal proibição do trânsito de carroças, caminhões e outros veículos por aqueles quarteirões. Deviam ficar, sem reserva, destinados à atividade e à faina, tão úteis ao incremento do país, dos cidadãos entregues às múltiplas especulações da bolsa, às exigências da fecunda jogatina e às contínuas incorporações de bancos, empresas e companhias, cujos pomposos prospectos diariamente enchiam, quase de princípio a fim, os jornais mais lidos e procurados da Capital Federal.
Do alto descia, senão bem às claras o exemplo, pelo menos o incitamento. O governo, na entontecedora ânsia de tudo destruir, tudo derrubar, metido nos escombros da demolição, coberto de caliça e de poeira, anelante das glórias da reconstrução no menor prazo, às carreiras, sem demora, olhando pouco para a natureza e qualidade dos elementos e materiais de que se ia servindo, visando a efeitos imediatos, como que esquecido do futuro e do rigor da lógica, a amontoar premissas de que deviam fatalmente decorrer as mais perigosas consequências, o governo, com a faca e o queijo na mão, promulgava decretos sobre decretos, expedia avisos e mais avisos, concessões de todas as espécies, garantias de juros, subvenções, privilégios, favores sem fim, sem conta, sem nexo, sem plano, e daí, outros tantos contrachoques na bolsa, poderosíssima pilha transbordando de eletricidade e letal pujança, madeiros enormes, impregnados de resina, prontos para chamejarem, atirados à fogueira imensa, colossal!
Pululavam os bancos de emissão e quase diariamente se viam na circulação monetária notas de todos os tipos, algumas novinhas, faceiras, artísticas, com figuras de bonitas mulheres e símbolos elegantes, outras sarapintadas às pressas, emplastradas de largos e nojentos borrões.
Quanto aos lastros em libras esterlinas e apólices da dívida pública, fazia-se vista gorda.
Contratos de imigração a dar com o pau, localização de milhares e milhares de famílias européias em todas as terras devolutas imagináveis, um nunca acabar, metade da Europa puxada a reboque para aqui, sem estorvo, nem dificuldade, que não fossem superados. Bastava singela petição de qualquer, já rico, já pobre, barão assinalado ou mais que modesto incógnito; sobretudo, porém, parentes, amigos, aduladores e apaniguados do momento.
O deferimento não se fazia esperar; nem havia mãos a medir. Requerimentos rabiscados sobre a perna, no intervalo de ruidosas palestras, entre duas fumaças de perfumado havana nos gabinetes ministeriais, sem indicação certa dos lugares, tudo no ar, às cegas, às cabeçadas, e logo transferido por bom dinheiro, centenas, senão milhares de contos de réis a companhias que, da noite para o dia, surgiam como irisados e radiantes cogumelos após chuvas e enxurradas, vivificados os incontáveis micróbios da podridão e dos esterquilínios.
Travava-se a responsabilidade do país em somas pavorosas e brincava-se com o crédito, o nome e o porvir da nação.
Pelo empenho dos corrilhos, pelas manobras da advocacia administrativa desbragada e impudente, viam-se atendidas as mais escandalosas reclamações, mil vezes indeferidas e enterradas nos escaninhos escuros dos arquivos; e indenizações que bradavam aos céus, abriam nos flancos do tesouro público verdadeiras brechas, que não sangrias, a cada momento aventadas pelos caprichos do ditador... Só o estilete de Tácito ou o látego de Juvenal...
Parecia indeclinável acabar de uma vez com todas as antigas práticas, transformar, quanto antes, as velhas tendências brasileiras de acautelada morosidade e paciente procrastinação. Ao amanhã de todo sempre, substituir-se-á o já e já! Quanto moroso, senão estéril no natural egoísmo, o pesado trabalho da terra, com os seus hábitos arraigados, rotineiros! A indústria, sim, eis o legítimo escopo de um grande povo moderno e que tem de aproveitar todas as lições da experiência e da civilização; a indústria, democrática nos seus intuitos, célere nos resultados, a fazer a felicidade dos operários, a valorizar e tresdobrar os capitais dos plutocratas, sempre em avanço e a progredir, tipo da verdadeira energia americana e a desbancar, com os seus inúmeros maquinismos, que dispensariam quase de todo o auxílio braçal, tudo quanto pudesse haver de melhor e mais aperfeiçoado nos mercados estrangeiros!
Tinha então a ironia patriótica sorrisos de inexcedível desprezo pelas ideias de outrora - esse outrora de ano e meio no mais e já tão afastado, tão distante! Que carrancismo, quanto atraso! Porventura não era tão simples correr sem parar, até perder o fôlego? Que melhor política do que sacar sobre o futuro, sacar sempre, a mais e mais com todo o desembaraço? Não é tão largo, tão extenso o futuro? Um país com tantos recursos! De que ter medo? O câmbio? Que importava? Fosse por aí abaixo, rodasse quanto quisesse, a 14, a 12, a 10, a 9... Melhor, não emigrariam os capitais, ficando a girar dentro do país, a enriquecê-lo, a fomentá-lo como generoso sangue, que por toda parte infundisse vida, saúde e robustez. Até os mais longínquos pontos do abandonado Mato Grosso iam desde logo partilhar dos bens da inesgotável cornucópia a entornar-se.
Cidades aniquiladas, mortas, nos últimos confins, surgiriam das tristes ruínas louçãs e garridas, como que tocadas pela varinha de bondosa fada, e em pouco tornariam aos dias de grandeza e opulência, nos tempos das fabulosas minas de ouro nativo de 24 quilates e à flor do chão!...
Então, que dizer do Rio de Janeiro? Ruas e até simples quarteirões viam constituírem-se companhias para transfigurá-los de momento em avenidas de suprema elegância, com todos os requintes do mais exigente policiamento.
As ciências, letras e artes, a educação da mocidade com tontinas, seguros de vida e loterias, tudo era motivo para valentes organizações sociais. E numerosas diretorias, largamente retribuídas, jurando aos seus deuses e batendo de entusiasmo nos peitos, prometiam fazer deste país uma nação excepcional em todo o orbe, graças ao simples influxo destas duas palavras escritas com letras verdes a cor simbólica dos formosos ideais - ORDEM E PROGRESSO.
Por que razão pedir e pagar um sem-número de produtos à interesseira e avara Europa, até perfumes! quando de tudo aqui se tinha em profusão inacreditável?! Tanta matéria-prima à mão, e, entretanto, malbaratada, perdida, a apodrecer, como se fora no centro da bárbara e desconfiada Ásia, ou da negra e boçal África! Importar seda, chá, vinho, trigo, linho e mil artefatos! Que inconsideração! E que faziam Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, todos os climas do mundo incluídos dentro do Brasil vastíssimo, interminável? Só se carecia de uma coisa: iniciativa, espírito de associação. A todo o transe, urgia apelar, reunir, mobilizar capitais, acordá-los, sacudi-los, tangê-los e, sem detença nem vacilação, obrigá-los a frutificar antes do mais em proveito de quantos se propunham, ousados e patriotas (era essa a nota do dia!), a agitar e vencer o torpor das economias amontoadas, apáticas, imprimindo-lhes elasticidade e vibração.
Para acudir a hipotéticos compromissos, formavam-se, em vésperas das incorporações, sindicatos, cujos membros camarariamente e com toda a paz de consciência entre si repartiam as primeiras e avultadas contribuições dos acionistas pressurosos, confiantes, hipnotizados. E na caixa coletora e abarrotada de dinheiro, cada qual por seu turno mergulhava até aos ombros os compridos e impacientes braços, explorando a gosto esses novos e comodíssimos placers californianos.
Dias depois, mais cinco, mais dez ou vinte espalhafatosas carruagens, puxadas por éguas ou cavalos de todos os tamanhos e pêlos, alguns mosqueados como onça pintada, todos a baterem com grande estrupido as patas, iam alinhar-se, guiadas por cocheiros graves, tesos, gordos, à inglesa, nas fileiras duplas e tríplices que tomavam de lado a lado o largo de S. Francisco de Paula, atestando ao bom do José Bonifácio, imóvel, brônzeo, com o seu eterno gesto de afetação acadêmica, a expansão instantânea e estupefaciente do seu querido Brasil.
Quanto ao povo, à gente que ainda andava a pé, ao cisco, como então se dizia, esse, contemplava tudo atônito, boquiaberto, um tanto assustadiço e sempre bestializado, na frase que ficou célebre.
(O Encilhamento, 1894.)