“Daí a pergunta que constantemente tem sido feita: qual o papel do setor público no ensino da medicina e no ensino universitário em geral?”
Este ano está sendo de comemorações: centenários, bicentenários, quadricentenários (do Padre Vieira, no caso). Será que o 08 no final de um ano é tão inspirador? Enquanto os adeptos da numerologia não se manifestam, vamos comemorando e, na semana passada, tivemos mais um motivo para isso: os 200 anos da Faculdade de Medicina da Bahia, primeira instituição oficial de ensino médico em nosso país, criada, como muitas outras instituições, por carta-régia de dom João VI, figura que, em matéria de saco de bondades, só perde para o Papai Noel.
Foi uma medida extremamente oportuna. Até então o país só podia contar com os poucos médicos formados em Portugal, que atendiam a uma minúscula, e privilegiada, parcela da população. O grosso dos brasileiros dependia de curandeiros ou de charlatães. E a situação de saúde do Brasil era triste, para dizer o mínimo. Os índios até que tinham boa saúde, mas a chegada de europeus e de africanos aumentou imensamente o “pool” de doenças, gerando epidemias sem conta.
Hoje a gente se assusta com os casos de febre amarela mas, no século 19, essa doença fazia milhares de vítimas. Não quer dizer que a medicina resolvesse o problema; era uma profissão de pouquíssimos recursos diagnósticos, terapêuticos ou preventivos. Mas a Faculdade de Medicina já era um começo e, no caso, foi um grande começo. A escola tropicalista baiana que mais tarde ali se formou, e que contou inclusive com médicos estrangeiros, representou um gigantesco avanço em termos da investigação de doenças infecciosas.
Também é de mencionar, como homenagem ao Dia da Mulher, na semana que vem, que a primeira médica brasileira lá se formou: foi a gaúcha Rita Lobato, uma pioneira que teve de vencer numerosos preconceitos. Por exemplo, ela só podia assistir às aulas de anatomia, essa ciência “imoral”, acompanhada de uma senhora de bons costumes. Mas caminho estava aberto para a entrada de mulheres na profissão na qual, hoje, estão em proporção muito significativa.
Como aconteceu em numerosas áreas, coube, pois, ao governo criar o ensino da medicina no Brasil. Não era regra geral: nos Estados Unidos, a imensa maioria das escolas médicas tinha, e tem, origem privada. O mesmo acabou acontecendo também em nosso país. Hoje temos, ao lado das faculdades federais, muitas excelentes faculdades mantidas por entidades educacionais. Daí a pergunta que constantemente tem sido feita: qual o papel do setor público no ensino da medicina e no ensino universitário em geral? O que diferencia uma faculdade de medicina mantida pelo governo de uma faculdade particular? Em outras palavras, qual deveria ser o papel do Estado nessa área? Essa discussão já era acesa na época em que cursei a Faculdade de Medicina da Universidade Federal do RS e continua atual porque não se trata de simples questão administrativa, trata-se de uma visão política mais ampla.
Uma resposta óbvia: garantir acesso à educação superior àqueles que não têm dinheiro para pagá-lo, já que o ensino público é gratuito. Mas não é isso o que acontece. À exceção das tão discutidas cotas, em geral as vagas são ocupadas por jovens com poder aquisitivo que os ajudou na preparação para o vestibular. Essa é uma das controvérsias. A outra: que tipo de ensino espera-se da universidade pública? Muitos educadores e administradores acham que tal universidade deveria formar profissionais voltados para o setor público. No caso da medicina, médicos treinados para enfrentar os problemas de saúde-doença mais comuns no Brasil, trabalhando em equipes multidisciplinares e utilizando metodologia adequada para tanto.
É claro que não era esse o objetivo de dom João VI. O problema naquela época era simplesmente arranjar médicos que dessem assistência à elite do país, então em formação. A família real fez o que dela muita gente esperava. Vamos ver se a gente consegue descobrir o que nos cabe fazer nessa área, sem esperar a chegada de um monarca que resolva o problema.
Correio Braziliense (DF) 29/2/2008