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Kafka no chão da alma

 

Entro com Zora no jardim do sanatório em que morreu Kafka. Estou em Kierling Klosterneuburg, a 50 quilômetros de Viena. Este não é jardim sofisticado, talvez nunca o tenha sido. É um lugar com plantas. Aqui passou Kafka os últimos 45 dias de sua vida.


Sentava-se numa espécie de varanda, o jardim em frente. Que será um jardim? Natureza domada? Natureza bem comportada? Natureza aperfeiçoada? Talvez natureza prisioneira. Nesta mesma Áustria, com a Viena das valsas e da burguesia elegante, houve uma explosão no jardim. Não falo em sentido figurado. Foi explosão real, de jogar terra, formigas e pedras para o ar.


No final do século XIX, o menino que seria mais tarde o pintor expressionista Oskar Kokoschka, filho de família pobre vienense, freqüentava o jardim situado no Parque Galintzinberg, onde mães e crianças da burguesia afluente passavam as tardes e, às 5 horas, tomavam chá. O espírito rebelde, já então de Oskar, levou-o a fabricar uma bomba que ele ocultou num canto do parque, embaixo de um formigueiro. Às cinco em ponto, a bomba explodiu e canteiros, flores, damas e crianças receberam uma chuva de formigas. Tal como Adão, Oskar foi expulso do jardim.


Relembrando essa explosão em sua autobiografia ("Aus der Jugeridbiographie", 1956), acrescentou Kokoschka um traço concreto à rebeldia de sua geração. Essa rebeldia estava também em vienenses de idades e origens sociais diversas, no pintor Gustav Klimt, no escritor Hugo von Hofmannsthal, em Freud, em Schnitzler, e que outro homem de Viena terá ido tão fundo no pensamento de nosso tempo como Wittgenstein?


Diante dos sinais da opulência do império dos Habsbourg, dos palácios, quadros, baixelas, móveis, tetos em ouro e salas em pau-rosa brasileiro, que visito e vejo, o outro lado também me acompanha. É o dos escritores, pintores, músicos e pensadores que provocaram explosões no jardim, embora muitos se tivessem depois esforçado em construir seus próprios jardins, com os elementos de uma nova concepção do mundo, das gentes e das coisas.


A casa em que morreu Kafka era então o sanatório do dr. Hoffmann. A tuberculose, que o acometia, não tivera melhoras nem com os médicos de Praga nem no Hospital Geral de Viena onde se tratava, quando, a 19 de abril de 1924, foi transferido para o Sanatório de Kierling. Subo pela escada, o quarto de Franz Kafka está no segundo andar. Fotografias do escritor, estantes com livros sobre sua obra, tudo muito simples, muito pobre.


Kafka morreu a 3 de junho de 1924 e, três anos depois, com a morte do dr. Hoffmann, o sanatório virou pensão. É hoje um pequeno edifício de apartamentos, e só o pavimento do meio guarda a memória de Kafka.


Retorno sozinho à varanda para rever o jardim. Se houve alguém que provocou explosões em jardins, foi o que morreu naquele andar. Sua visão do mundo nos colocou de cabeça para baixo, ou de casco de besouro para baixo. Em seus últimos dias, poucas pessoas o viram.


Robert Klopstock e Dora Diamant o acompanharam na curta viagem de Viena a Kiosterneuburg. Max Brod saiu de Praga para visitá-lo. Durante esse período, o escritor corrigiu as provas do conto "O artista da fome" que, na sua meticulosa concisão, integrou todo um gigantesco empenho para provocar uma verdadeira metamorfose em nossa maneira de ver as coisas.


Estamos no outono, o jardim quase não tem flores. Um "brinco-de-rainha" pende tranqüilo de sua haste, visitantes fazem comentários em muitos idiomas, ocorre-me a idéia de que no princípio era a palavra, mas também a forma, aquele jeito especial de uma coisa ser o que é, na quiditas de São Tomás de Aquino, e que essa forma antecede e busca a palavra, como o homem busca Deus ou o que seja para ele Deus.


Kafka procurava um significado, ou mesmo um não-significado para o frágil ser humano submetido a um processo de que ele desconhece todos os detalhes: sabe apenas que está sendo julgado. Pode ter sido neste quarto que ele disse, ou repetiu, a Max Brod, falando sobre Chesterton: "Ele é tão alegre que parece ter achado Deus".


A angústia de Kafka, herdeira de uma angústia muito antiga - de Agostinho, Pascal, Kierkegaard - faz parte de um esforço doloroso e sangrento para esgaravatar o chão da alma e compreender melhor o mundo.


"O processo", de Franz Kafka é uma reimpressão da L&PM Editores, tradução Marcelo Backes, capa de Ivan Pinheiro Machado sobre retrato de Franz Kafka, Budapeste, 1917, por autor desconhecido.


Tribuna da Imprensa (RJ) 19/2/2008