O problema hoje do conflito das civilizações vai muito para além das visões normais de uma ética da mudança, com suas correções voluntaristas de rumo, reconhecimento de equívocos, ou de preservação de idéias feitas e estereótipos. Faz-se mister encontrar, desde logo, uma plataforma mínima de entendimento quando um universo de desconfianças mergulha na “civilização do medo” ou de uma guerra de religiões.
Onde estão, hoje, no diálogo entre o Islão e o Ocidente, estas pontes, esses trânsitos desimpedidos? A existirem, o primeiro desses universais é o dos direitos humanos. Mas têm eles a mesma abordagem em nosso tempo? A banda islâmica valoriza a honra, a propriedade, a hospitalidade, a fraternidade, enquanto o nosso, sobremodo, o direito de expressão da pessoa.
As polêmicas em volta das caricaturas do Profeta mostraram como o direito de dizer-se o que se pensa pode se transformar numa blasfêmia, frente ao teor religioso de uma nação, regida pela sharia, tal como o Irã, e outros países da mesma área cultural.
Como encontrar dentro dos direitos humanos, a pauta básica de garantia desta pessoa? Seriam a defesa da vida, a luta contra a tortura, o direito de reunião e de comunicação. Mas para aproximar, de vez, neste essencial, as duas culturas há que, primeiro, argüir deste reconhecimento básico, também do direito à diferença.
E, mais ainda, hoje em dia chegamos, realmente, à verdade deste conhecimento, ou a civilização mediática já nos levou, de fato, aos simulacros desta realidade? Ou como diz Jean Baudrillard, será que o problema deste conflito começa pela sistemática desfiguração do que se apresenta em satisfação do consumismo das imagens mais apetecíveis?
O mundo está banhado por esta fatura da cabeça, e subordinado a um autocontrole social em que cada vez menos comandamos o imaginário do nosso tempo. Vamos voltar a pensar o que pensamos, ou continuaremos na melopéia sonâmbula, dos estereótipos e das idéias feitas?
Na busca dos verdadeiros universais teremos de repensar nas suas reais dimensões, o que são as culturas e a sua individualidade. Por que, por exemplo, se está recusando o acesso da Turquia à grande Europa? Até onde atua aí um inconsciente coletivo que, instintivamente, associa a civilização cristã à Europa e se amodorram as expectativas, e se atrasa essa entrada, tão importante para o balanço político de nossos dias, em nome de um fundamentalismo estéril e pretérito?
Inquieta ao mundo como os Estados Unidos, dentro de uma idéia de civilização eleita, para preservar o Ocidente, o ver-se como o guarda de um Cristianismo regressivo, que nos leva a esse fenômeno inquietante dos neocons, e, agora, do perturbador evangelismo republicano, ligado aos valores mais primários do que seja uma mensagem cristã na interculturalidade contemporânea.
2008 é um ano matricial, num marco crítico de opções que voltam, sobretudo, nessa esplêndida mobilização americana, ao exercício mais profundo e definido da democracia. Mas com que cabeça se vai às urnas? A da “civilização do medo” ou a dos olhos de ver o outro? A ascensão de Barack Obama vence, de vez, estes estereótipos, e desrepresa as fatalidades hegemonias para um novo e inesperado diálogo das diferenças, para a entente tão sofrida das culturas.
Jornal do Commercio (RJ) 15/2/2008