Linhas deixadas por Machado são para ser pensadas e salvadas no disco rígido de nossa vida e memória
Freitas, personagem secundário de "Quincas Borba", define-se como "arquiteto de ruínas". Outro Freitas, meu amigo Edgard Freitas Jr., me lembra que Machado não é para ser lido, mas pensado.
Por isso mesmo, dando razão aos dois Freitas, ao personagem e ao amigo, sempre que me perguntam qual é o romance que mais aprecio na literatura brasileira, digo sempre que é "Quincas Borba", continuação quase natural das "Memórias Póstumas de Brás Cubas".
Comecei a percorrer o labirinto-enigma de Machado pelo óbvio "Dom Casmurro". Durante uns 20 anos considerava o drama de Bentinho e Capitu como o ponto alto da ficção nacional. Depois, passei a gostar mais do "Brás Cubas", aquele capítulo final dos "não" é uma das melhores páginas da literatura universal. Somente na maturidade, depois de algumas releituras, cheguei ao "Quincas Borba". E fiquei com ele para sempre.
Não entendo de crítica literária, por isso me limitarei a transcrever algumas linhas que assinalei no texto ao longo de várias releituras. Como disse um dos Freitas citados acima, são para ser pensadas e salvadas no disco rígido de nossa vida e memória.
"O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado. Em todo caso, é mais seguro crer no pior. O silêncio é um tumulto. A moral é uma, os pecados são diferentes. Que sabe a aranha a respeito de Mozart? Ignorar era um benefício. (A suspeita) vinha de si mesmo ou de fora? Há entre o céu e a terra muitas mais ruas do que sonha a tua filosofia -ruas transversais."
Pedir-lhe perdão. De quê? "Não sabia, mas queria ser perdoado. Acabou por escrever todos os livros que lera. Conversar com os seus botões. Os botões operam sincronicamente conosco; formam uma espécie de senado, cômodo e barato, que vota sempre as nossas moções. Minha vida é uma imagem fiel da minha cara, e vice-versa. Aqui é que o ciúme trouxe ao nosso amigo uma dentada de sangue. O desejo de saber tudo era, em resumo, esperança de descobrir que não havia nada. Tão certo é que a paisagem depende do ponto de vista, e que o melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão."
"Ao vencedor, as batatas! Tinha-as esquecido de todo, a fórmula e a alegoria. De repente, como se as sílabas houvessem ficado no ar, intactas, aguardando alguém que as pudesse entender, uniu-as, recompôs a fórmula, e proferiu-a com a mesma ênfase daquele dia em que a tomou por lei da vida e da verdade. Não se lembrava inteiramente da alegoria; mas a palavra deu-lhe o sentido vago da luta e da vitória: Ao vencedor, as batatas!"
Paro com as citações. Poderiam ser muitas, como "os morangos adúlteros", os "olhos amotinados", que me parecem mais reveladores do que os olhos oblíquos e dissimulados de Capitu. Gosto especialmente de certas pontuações que são freqüentes em "Quincas Borba": sem público, diante de si mesmo. A alma espanada. É muito; é demais. Toda nada.
Machado tem sido criticado por desprezar a paisagem. Coelho Neto dizia que as casas de Machado não tinham quintais -aliás, é o que não faltava nos romances tradicionais daquele tempo, sobretudo nos de José de Alencar e do próprio Coelho Neto. Para explicar esse desprezo machadiano pela paisagem, Gilberto Freyre, este sim, um apóstolo de quintais, observou que Machado não abria janelas para não se deparar com o morro fatal, onde nascera.
Não aprecio pensamentos sofisticados. Prefiro os de Quincas Borba, não o filósofo mas o cão que deu título ao livro: "Não dorme, recolhe as idéias (...) Mas já são muitas idéias, -são idéias demais; em todo o caso, são idéias de cachorro, poeira de idéias".
Folha de S. Paulo (SP) 27/1/2008