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O triste fim de um repórter

 

Defendi a matéria com veemência e, para se verem livres de mim, prometeram publicá-la


PESQUISARA MUITA coisa, juntando recortes de jornais e revistas no armário de aço que Tânia me sugerira comprar. Já me separara de minha mulher e de minhas duas filhas, ou melhor, elas é que se afastaram de mim, a vida profissional começara a decair, passara dois anos sem nenhuma revisão salarial, apesar da inflação cada vez mais alta. E tinha dificuldade em emplacar colaborações -o que sempre me garantira renda extra.


Conhecera Tânia na festa de aniversário de um colega, eu já estava em processo de desintegração familiar, ela também, e dois náufragos, mesmo que se detestem, encontram um motivo comum para se agarrarem na mesma tábua.


Mais tarde, passaria a gostar dela. E acredito que ela, se não chegava a me amar, ao menos admirava minha obsessão em seguir uma idéia que não me dava retorno algum, pelo contrário, cada vez mais me afundava, mais me discriminava no mercado de trabalho.


Passei a morar sozinho, numa quitinete na Glória, espalhava o material que ia juntando pelo chão, ou em cima da pequena mesa onde, eventualmente, como a pizza que mando buscar. Mais tarde, em dois arquivos de aço, um que consegui comprar, outro que Tânia me presenteou.


Entrei em decadência -fui o primeiro a admitir isso. Com 40 anos, a idade em que os bons profissionais começam a se firmar, eu caíra na vala comum do noticiário miúdo, mudando de uma para outra editoria, pulando da economia para o esporte, do esporte para a cidade, da cidade para o comportamento.


Podia me dar bem em qualquer uma delas, mas não me levavam a sério, trazia na testa o estigma do especialista num assunto único, obcecado por matérias que não interessavam a ninguém. A seqüência das mortes de adversários do regime ditatorial era um assunto esotérico, como os discos voadores, os extraterrestres.


Havia um precedente que me foi lembrado por um redator dos "Diários Associados", um colosso da comunicação em seu tempo. A revista "O Cruzeiro", então a maior da América Latina, publicara polêmica matéria sobre um disco voador na Barra da Tijuca, disco que fora visto e fotografado por dois profissionais da revista, provocando impacto na imprensa internacional.


As fotos foram examinadas por especialistas de diversos países, houve controvérsias, alguns peritos afirmaram que eram verdadeiras, sem truque nem montagem, outros denunciaram a fraude. O fotógrafo foi elogiado pela competência técnica com que tirara as fotos que, verdadeiras ou falsas, deram um show de fotografia.


O mesmo não aconteceu com o autor do texto. Ele ficaria marcado para o resto de sua vida, esteve internado para curar sua depressão, e embora fosse um excelente repórter, dono de um texto correto e tecnicamente perfeito, nunca mais conseguiu se recuperar no mercado de trabalho.


Mesmo com esse antecedente, joguei todas as minhas fichas de uma só vez, fazendo um texto com os poucos elementos que possuía, falando dos fatos que sabia e que, na realidade, pareciam só preocupar a mim.


Defendi a matéria com veemência junto à direção do jornal e, para se verem livres de mim, prometeram publicar o meu texto -que seria o pretexto para minha demissão, dois meses depois, sob a alegação do "corte de custos" e inchaço do grupo de repórteres que, como eu, dançavam de uma editoria para outra, sem pouso certo para me fixar num tipo de trabalho que me desse credibilidade maior e, suplementarmente, maior respeito profissional. Mais uma vez a matéria seria vetada.


Para falar a verdade, eu nem cheguei a sofrer. Começava a ficar descrente de tudo, daí para frente -prometi a mim mesmo- procuraria ser apenas um profissional. Entre vender sapatos e terrenos, ser bancário ou banqueiro, continuaria fazendo o que podia. E podia cada vez menos. Por maldade ou ironia do destino, pouco depois de minha demissão correu o boato de que eu havia morrido num acidente de carro, no Aterro do Flamengo, em frente ao Museu de Arte Moderna. Mereci uma nota modesta, de cinco linhas, na seção de vítimas do trânsito, no caderno da cidade. Não me dei ao trabalho de desmentir.


Folha de S. Paulo (SP) 18/1/2008