Foi com intimidade, que só se consegue nos sonhos, que passei a mão em seus lambris
FOI AQUI: há 50 anos iniciei minha vida profissional, substituindo o pai na Sala de Imprensa da Prefeitura. Tinha ido à cidade para comprar uns troços, aproveitei e visitei meu primeiro chão de trabalho.
A sala continua a mesma, toda forrada de madeira escura e lavrada, com painéis no teto e nas cantoneiras, encaixando pinturas representando alguma coisa a ver com os trabalhos do campo.
Os mesmos móveis, as mesmas poltronas, as mesmas janelas que parecem portas gigantescas dando para a rua Álvaro Alvim -em cujos peitoris via as mulheres rumo aos cinemas da Cinelândia e onde arranjei uma namorada, foi a primeira que passou a noite inteira comigo, no apartamento em Copacabana que eu tinha em sociedade com um capitão-de-fragata que morreu como capitão-de-mar-e-guerra.
Olhei aquilo tudo, tudo no mesmo lugar e na mesma importância, como se de repente ali entrasse o Cristóvão Freire, o Santos Melo, o Álvaro Pinto da Silva, o Raymundo Athayde, o Gilberto Pimentel, o Salvador Neno Rosa, o Breno Pessoa, o Deodoro Costa Lopes, o Faustino Passarelli, o Pereira Filho, o Amorim Neto, o Lourival Pereira, o Vítor do Espírito Santo, o contínuo Zé Porfírio e, sobretudo, o pai.
Uma tarde, recebemos a visita de Eisenhower, logo depois da guerra, quando ele veio agradecer a presença do Brasil na campanha da Itália. Tenho a foto da turma, estou ao lado do general. Eu usava óculos, ele se admirou de ver um jornalista tão jovem, chamou-me de "young boy".
A sala me marcou quase tanto quanto o seminário. O velho prédio do Rio Comprido não mais existe, a parte que sobreviveu, tombada pelo Patrimônio Histórico, é uma jóia da era colonial. Todos os cenários da minha infância desapareceram. Somente a Sala Inglesa, vazia àquela hora, continuava intacta, nada havia acontecido na minha vida nem na dela.
Foi com intimidade, uma intimidade que só se consegue nos sonhos, que passei a mão em seus lambris, na escultura de bronze onde está escrito "Pour la Patrie", nas maçanetas de bronze, no pequeno console à direita da entrada. De olhos fechados eu faria aquele roteiro. Em qualquer parte do mundo, em qualquer situação, bastará fechar os olhos e tudo aquilo virá como se nunca tivesse ido.
Parado naquela sala, olhando aquelas paredes, aqueles lustres redondos, aqueles lambris de madeira escura e trabalhada, é como se nada houvesse acontecido.
Tudo poderia voltar a acontecer a partir daquela sala sombria, solene, cenário que nunca tive outro igual. E o Lourival entrasse por ela, dando a arrecadação do dia ("A Secretaria de Finanças arrecadou 53.697 cruzeiros provenientes de tributos diversos"). O Cristóvão Freire, barrigudo, de suéter cor de vinho, lendo em voz alta um novo capítulo do romance que vinha escrevendo, nunca encontrou quem o editasse.
Lembro o Deodoro, o Papai Deodoro, sentado de costas para o mesmo relógio redondo que ali está até hoje. Volta e meia pedia genericamente: "Vê que horas são para o Papai Deodoro"; tinha preguiça de virar a cabeça.
Havia o Osvaldo Furtado Luz, ex-integralista, que estivera preso por causa do ataque ao Palácio Guanabara, quando queriam matar o Getulio. Era filho de Fábio da Luz, que deu nome a uma rua no Méier. Ele tinha um bordão: "Eu sou macho!" Grandes tipos viveram ali, e eu com eles.
Outras lembranças: o enterro de Carmem Miranda. Ela estava sendo velada no hall de entrada. Foi o primeiro cadáver maquilado que vi. E não me lembro quando nem por que houve festa no salão nobre, o anfitrião era o poeta Jorge de Lima, então na presidência da Câmara Municipal. O personagem mais importante era Luiz Carlos Prestes, foi a primeira vez que apertei a mão do grande líder nacional. Ele era senador, recebia os convidados ao lado de Jorge de Lima, que nas horas vagas da presidência fazia a sua monumental "Invenção de Orfeu".
De repente, Ary Barroso, então vereador, sentou-se ao piano e começou a tocar. Todos pararam de dançar, mas Ary pediu que o baile continuasse. Muitas outras lembranças vieram ao mesmo tempo, fragmentos do homem aos pedaços que o tempo não apagou, mas nem por isso lhe deu sentido.
Folha de S. Paulo (SP) 11/1/2008