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Quase milagre

 

Apavorado, pensei tratar-se de um milagre. Por que não? Talvez merecesse um milagre de Natal, pois o milagre ali estava. Pensei em ajoelhar-me, rendido afinal à evidência do sobrenatural


PASSAVA-SE o ano todo no seminário, só se saía para ir à casa dos pais lá pelo fim do ano, e eram só três dias de férias. A debandada começava no dia 22 de dezembro, e à tardinha do dia 24 voltávamos todos. A noite de Natal era em nossa capela, a missa de meia-noite celebrada com os paramentos que o padre reitor trouxera da Itália: brancos, com uma cruz prateada nas costas, um cordeirinho dourado no centro.


Foi num desses regressos. Atrasei-me em qualquer canto, quando cheguei, os recreios já estavam vazios, a comunidade no refeitório, ouvia-se a algazarra dos que voltavam, as novidades súbitas, o barulho dos talheres.


Eu trazia embrulhos para deixar no recreio e não podia ir direto para o refeitório. Ao cair da tarde, cruzei as arcadas centenárias do nosso adro e penetrei no pátio colonial que servia de centro do nosso recreio. Bem no meio, padre Cipriano armara uma árvore-de-natal enorme, e de verdade: arrancara-a da floresta que sobe para o Sumaré e a plantara em nosso chão. Ela cheirava a seiva, a fruta silvestre. Pelos ramos, ele pendurara enfeites e presentes -presentes pobres, gaitinhas de boca, bolas e raquetes de pingue-pongue, canetas e pacotes de balas- davam àquela árvore um encanto colorido e mágico.


Escondida no tronco, disfarçada com musgos e fitas vermelhas, padre Cipriano colocara uma caixinha de música. A caixinha tocava -e a música invisível brotava da transparência iluminada dos ramos.


O pátio estava deserto -e eu não percebi que havia uma caixinha de música ali escondida. Apavorado, pensei tratar-se de um milagre. Por que não? Talvez merecesse um milagre de Natal, pois o milagre ali estava. Pensei em ajoelhar-me, rendido afinal à evidência do sobrenatural.


Milagre ou miragem? Vi, nitidamente, uma coisa macia e branca pairando acima dos galhos. Tão perfeita esta visão que a coisa branca roçou pelos ramos e a árvore ficou balançando, como se a asa de um anjo tivesse passado pelas folhagens que cantavam, agora lentamente, no final da corda da caixinha.


Quando a música parou mesmo, o encantamento passou -e, o que foi pior, teve explicação. A música não vinha dos anjos, era apenas uma caixinha escondida, ouvi quando o rolo estancou, metalicamente, no meio da melodia. E a sombra branca que me pareceu a asa de um anjo era uma tira enorme de papel celofane que o padre Cipriano colocara em cima da árvore. O vento a balançava, dando vida ao milagre que eu julgara montado para mim.


Entrei pelo refeitório de cabeça baixa, sem vontade de conversar e de participar da alegria geral. Sobretudo, com uma enorme vergonha de contar o susto que me deslumbrara, que me fizera tremer os joelhos e o coração. Mesmo assim, o instante de dúvida, mágico e bom, ficou em mim para sempre.


Todos os anos, agora, na lucidez do adulto corrompido, não esqueço de erguer a minha árvore. Tenho uma desculpa: digo que é para as meninas. A árvore é para mim mesmo. Depois de pronta, deito-me no sofá e fico olhando, fingindo que durmo, mas vigiando, à espera de que a asa de um anjo roce novamente por ela.


Ontem, eu estava mais cansado do que o habitual, e dormi mesmo. Acordei de repente e vi alguém tocando na árvore. Firmei a vista: era minha filha mais velha que atarraxava uma lâmpada que o vento deslocara. Voltei a dormir -e agora, pensando em tudo, olhando a vida em conjunto, e sem mágoas, percebo que a culpa foi sempre minha. Culpa de não ter sabido esperar mais um pouco. Culpa de não ter tido coragem para olhar mais fundo, e inapelavelmente.


Folha de S. Paulo (SP) 25/12/2007

Folha de S. Paulo (SP), 25/12/2007