Ao concluir minha gestão presidencial na Academia julguei do meu dever emitir avaliações, dar testemunho e despedir-me. Aí, eu disse assim:
Se o trabalho trouxe algum cansaço, se rugas apareceram, não importa. É tudo registro das emoções. Se buscamos alguma inovação foi por competir a quem administra obter melhores meios para melhores fins, sob a cadência da respiração a fim de não perder tempo. Se foi dada continuidade a tantas linhas de ações foi pelo conhecimento de que a continuidade é a solidariedade no tempo. A Academia se responsabiliza pelo que faz e presta atenção ao que acontece.
A invenção só é possível se trabalharmos pelo ainda não realizado. As palavras só valem se atrás delas vierem idéias, atos e fatos.
A Academia Brasileira de Letras nunca foi para fazer a cultura do Príncipe ou dos príncipes, mas para trabalhar pelo culto da Liberdade. A Liberdade é apanágio das humanidades e patrimônio do povo.
A Academia trabalhará sempre pelo conhecimento, que não é um processo de transferência, mas de aguçada construção.
Assim, deve estar comprometida em ser instrumento a serviço da língua e da cultura.
Na presidência da Casa lutei por ser, por saber e por aprender. Escutei o zumbido da ABL a trabalhar. Aí residiu o meu conforto.
A Academia é anciã austera, mas vivaz. A idade a que atingiu não serve para retardar-lhe o passo. A Academia é também magnética. Nela não cabem nem decadência do espírito nem das coisas. Não temos que ancorar nas horas. Temos é que libertar os gestos. Para tanto, há que empregar forças e meios. Forças e meios que existem para que, convocados, juntem-se a serviço da Casa e dos Acadêmicos, esconjurando a mesmice. Se não for assim, ficaremos à janela vendo o tempo passar. Se não for assim, desrespeitaremos a regra transmitida por Machado de Assis, aquela de atentar sempre para o que é útil, que a utilidade é valor e título para a Academia.
Forças e meios tem de ser úteis. Não existem para justificar inação ou para serem contemplados em acumulações paralisantes. Por exemplo: o centenário da morte de Machado, tema básico de 2008, cujas comemorações já iniciamos este ano em Londres, nunca será uma festa de girândolas sobre ruínas, mas um convívio com a claridade da inteligência. Não é apenas a dominação de idéia comemorativa, senão o compromisso com a memória verificada.
Fiz o que pude, não tudo o que desejei ou deveria, ora por não poder mais, ora por não saber mais que o estritamente necessário. Desculpem-me por isto. Peço escusas aos confrades e aos servidores. O que fiz foi com muita paixão, com total alegria, feliz da vida, honrado por sentar nesta cadeira que Machado, uma legião de grandes homens e uma notável mulher ocuparam com o brilho de que me servi. Se ficou alguma anotação de descompromisso em relação a mim, não é problema meu. Deletei. Nada tem calibre suficiente para me atingir nessa honra e nessa alegria de ter sido Presidente. Para mim foi uma beleza. Foi tudo uma alegria para o coração. Essa alegria é a vida do homem.Trabalhei nos meus parâmetros de reagir à concentração. Igualmente, tenho horror ao que seja o cultivo do dividir. Minha raça é a da convergência, da fraternidade. Odeio grosseria, enoja-me a deslealdade. Como nada disso trafegou nos meus caminhos, só falei de alegria.
Não teria a petulância de atribuir-me os belos versos de Torga em registros para Afonso de Albuquerque, a dizer: do que fiz ou não fiz, não cuido agora, as Índias todas falarão por mim. Não há nem a Índia nem indianos ao meu redor.
Cuido é das minhas dívidas. Cuido agora e cuidarei sempre. Dívidas com os companheiros, solidários, estimuladores, com ótica sempre generosa para mim, que nunca largaram as minhas mãos. Deram-me o contributo de trabalho e conselhos. Foram impecáveis.
Cuido das dívidas com os servidores, que nunca me faltaram.
Dívida imensa com o Brasil que apoiou a Academia em intensidade jamais alcançada. Foi o Brasil que permitiu à Academia, como disse Eduardo Portella, rejeitar para sempre o modelo do confidencial e se abraçar coma sociedade.
Dívida com a família toda: a mãe Evalda, os filhos Rodrigo Otaviano e Taciana Cecília, os netos José, Ilanna, Vinicius, Otaviano e Enrico. Com os meus mortos Marcantonio, Vytória e o velho Vilaça. Para eles todos sempre me volto em promessas futurantes ou em recordações.
Dívida maior com Carmo, a minha N. S. da Paciência, que não é minha cara-metade, mas meu caro-inteiro. Sem ela, sem ela repito, nada para mim é possível. Nada. Nada, mesmo. Para ela, tudo, tudo que expresse gratidão.
São Bento que cuide de dizer a Deus, como agradecimento meu, que o "ora et labora" foi respeitado por mim.
Agora, vejamos se há algum tipo de sol no ocaso. Espero que sim.
Com versos de Carlos Pena Filho - poeta poetíssimo, meu conterrâneo - expliquei o que sentia e me despedi:
"Às vezes, penso: não tem dor nem mágoa quem se ofertou a
tão alegre ofício".
Diário de Pernambuco (PE) 20/12/2007