Certas coisas são meio chatas de confessar, e eu não devia contar nada, mas o assunto não me sai da cabeça e, como sempre, se impõe despoticamente, o que significa que vou falar nele. E não posso mentir, não só porque mentir decerto está na moda, mas é feio, como porque, se mentisse, estaria escamoteando justamente o sentimento que agora me acompanha para todo lado. Fiz o possível para escrever sobre outras coisas, chega de reclamar do governo e dos governantes, é domingo, vamos mudar de assunto, vamos nos alienar um pouco, não é pecado tão grave assim. Eu não quero ser como o colega de serviço que chega para a rodada de cerveja da sexta à noite e a primeira coisa em que fala é na previsão de faturamento em dezembro.
Mas não houve jeito e, assim sendo, conto logo. Ao ver a cara de tacho do Chávez exibida nos últimos dias, não me vieram à cabeça - ou, por outra, vieram, mas muito depois e secundariamente, vergonha mate-me - especulações sobre a realidade continental, raciocínios sobre a realidade nacional ou considerações sobre "as lições do chavismo", o que, aliás, alguém já deve ter escrito a esta altura. O que me ocorreu primeiro foi uma euforia desmesurada, que certamente os mais jovens não poderão sentir em sua plenitude, mas coroas mais ou menos do meu tope compreenderão ou até partilharão, porque lembram, mesmo que nebulosamente, os outros tempos.
Lembram os tempos em que líderes que hoje pareceriam, ou talvez pareçam nos documentários, ridículos ou grotescos, movimentavam, às vezes em coreografias monumentais e jamais vistas antes, massas de gente fanatizada até a completa insanidade. Lembram os tempos em que chefetes igualmente ridículos, aqui pela chamada América Latina, envergavam uniformes de marechais soterrados em dragonas que cascateavam como cachoeiras extravagantes, por trás de medalhões do diâmetro de pizzas e enrolados em faixas de cores equívocas. Eram todos ditadores, a maior parte deles sanguinários, invariavelmente liberticidas e, em alguns casos, de grande popularidade entre os pobres, a quem distribuíam fartos benefícios assistencialistas.
Podia escrever muito mais para relembrar esses velhos tempos, mas, depois de nossa última ditadura (espero que última mesmo, não no sentido de "mais recente"), tem sido, apesar dos pesares, tão bom ver essas imagens ridículas de ópera bufa se diluírem no passado, onde nos envergonhem de bem longe e de onde não tenham possibilidade de voltar. Apesar de mais pesares ainda, tem sido tão bom desfrutar de liberdade, poder dizer e publicar o que se quer, combater as ameaças a essas liberdades - desfrutar, enfim, ainda que muito imperfeitamente, de um regime democrático. E desfrutar, enfim, do que de bom o século XXI ainda pode oferecer.
Cada vez em que Chávez berrava qualquer coisa terminada em "!o Muerte¡" me dava um calafrio. Não de medo, mas de vergonha. Deus do céu, estávamos voltando àquele tempo e claro que, se alguém sair perguntando quem foi Juán Perón ou mesmo Fujimoro, que é bem mais próximo, vão responder que o primeiro era vocalista dos Menudos e o segundo, uma marca de videogame que chegou para desbancar todas as outras. Mas eu tinha vergonha daquele filme todo que eu já tinha visto, agora parecendo ganhar legitimidade e poder a cada instante. Não bastava que continuássemos um continente atrasado, marchávamos na direção de mais atraso, a revolução do atraso do atraso.
Revivendo nossas mais tragicômicas tradições, líderes aqui e acolá, notadamente o próprio Chávez, deram para ressuscitar uma cultura popularesca, imaginaram um "socialismo" onde ele e sua turma ficariam sempre por cima da carne-seca, distribuindo entre o povo os restos da corrupção que inevitavelmente viria em avalanche. Filme visto, revisto e trevisto, até mesmo com essa irritante mania de "Socialismo o Muerte¡", ou qualquer coisa ou morte. Obsessão de morte, chega desse negócio, todos os hinos, inclusive o nosso, ficam falando em morte, chega de atraso, vão morrer pra lá. Não estou querendo sugerir nada, mas por que nunca ocorre aos salvadores da pátria dizer algo como "!Socialismo y Vida¡", por exemplo?
Pois foi esse meu principal sentimento sobre esse assunto, uma espécie de alívio cronológico, eu podia não estar condenado a viver tudo novamente, a vida é curta e reprise não. E houve, naturalmente, curtições adicionais, tais como algumas manifestações do próprio Chávez. Numa delas, comentou que o povo ainda não estava pronto para as reformas dele. Devia ter dito, isto sim, que o povo já estava pronto, e não por obra dele, para não aceitar esse tipo de reforma ditatorial, personalista - e atrasada, atrasada, muito atrasada¡ Mas ele preferiu, em última análise, opinar que o povo votou errado. Votou contra o atraso e votou soberanamente, errado. Vocês vejam como é a vida: um dia o voto é o instrumento perfeito, se não único, para que o povo manifeste sua vontade. No dia seguinte, pode não ser, já que o povo, infelizmente, não sabe o que é bom para ele. Por conseguinte, o voto pode ser algo muito perigoso.
Também foi interessante saber que um elevado índice de absenteísmo veio de chavistas não-radicais. É mais um exemplo da verdade contida na famosa observação de que é fácil ser revoltado, difícil é ser revoltoso. E aí, pensando em como bem que podia vir a ser verdade essa conversa de ter de dividir a casa com uma família pobre, preferiram ficar na sua, continuar a freqüentar as rodas intelectuais chavistas de Caracas e falar bastante. É, acho que há lições a tirar do episódio. Por exemplo, esse negócio de eleição plebiscitária hoje tão falado, que dizem vocês, seria revelador aqui? Acho que seria, embora talvez não na forma atualmente tida como favas contadas.
O Globo (RJ) 9/12/2007