Menino, a gente se distrai e, quando vê, já é dezembro, fim de ano. Cada ano - e eu sei que os mais velhos notam isso agudamente - passa mais depressa que o anterior, que por sua vez será mais acelerado e por aí nós vamos, uns menos aos trancos e barrancos do que outros, cada um sabendo onde lhe doem os calos e todos procurando em quem botar alguma culpa, como sempre comentou meu querido amigo finado Zé de Honorina. Ele nunca leu Freud, mas não precisava, sabia tudo de nascença.
Como todo itaparicano, uns naturalmente mais e outros menos, ele era filósofo e orador. Sua eloqüência, contudo, das mais portentosas que já presenciei (eu sei que tem gente que acha que é tudo invenção minha, mas tenho testemunhas conhecidas; Sebastião Lacerda mesmo, meu amigo e editor, foi também amigo de Zé, está aí e não me deixa mentir; Wilson das Neves, o baterista, é outro), não é bem lembrada pelos muitos atingidos, ou seja todo mundo que ele conheceu ou de quem ouviu falar, inclusive Freud, Einstein, Shakespeare, madre Teresa de Calcutá, Martin Luther King ou o dalai-lama. Não se tratava, de jeito nenhum, de questão de ruindade. Pelo contrário, ele era um dos melhores e mais generosos homens que já conheci, um amigo extraordinariamente afetuoso e solidário, mas sina é sina. Nasceu com umas partes com Gregório de Matos e ninguém segurava uma catilinária dele, era um roldão irresistível. Normalmente eu me retirava porque, se ficasse, sobrava para mim, como chegou a sobrar um par de vezes.
Mas, na sua condição de filósofo e analista da alma, ele era irretocável. Não sei se foi ele quem primeiro me deu um ensinamento antigamente muito repetido, pelo menos no Nordeste, mas hoje acho que em desuso. Subia do chão e se irradiava das paredes um calor como só acontece às vezes na ilha e nós estávamos sentados, como era comum, na soleira de uma casa que ele tinha no largo da Quitanda, de onde comandava aos berros seus negócios. Dia para ficar de mau humor, vontade de que ele passasse depressa e a noite trouxesse uma fresquinha. Zé mesmo não estava com a disposição muito amigueira, tanto assim que, com uma resposta exemplar que deu a um interlocutor, me ensinou uma liçãozinha que uso até hoje e acho que sempre usarei. Fazia não sei quanto tempo que o sujeito desfiava para nós um rosário de fofocas, queixas e maledicências e Zé começou a se mexer inquieto.
- Olhe aqui, meu camaradinha, faça o seguinte: vá procurar quem estragou sua mocidade e me deixe aqui quieto - disse ele.
Esplêndido exemplo. Claro, deve ser seguido com moderação e equilíbrio, como eu mesmo faço, mas sua eficácia, quando propiciado pela boa oportunidade e necessidade, é comprovada e invariavelmente faz muito bem a pelo menos um dos envolvidos. No momento apropriado - e apenas no momento cuidadosamente avaliado - é excelente dizer a um certo alguém que vá procurar quem estragou a mocidade dele(a). Não é, porém, a esse ensinamento que ia referir-me. Foi depois que comentamos sobre que dia chato estava sendo aquele que Zé ressaltou que ainda ontem estava comprando os cajus de janeiro e agora já estava na hora do milho de junho, num instantinho. ''''O dia passa devagar'''', disse Zé. ''''O ano é que passa depressa.''''
Outra grande verdade, como prova este domingo afinal escorregadio, que vai se esfumaçando num acesso melancólico de segunda-feirite, ao som da música do Fantástico. Lá vai ele, demorando a acabar. Para os que tiveram que vestir paletó para ir a um casamento do outro lado da cidade, os que foram obrigados mais uma vez a agüentar o sogro stalinista chamando a todos de lacaios de Wall Street, para os que escutaram no churrasco com uísque nacional como um cunhado estava traçando todo o elenco de gostosas da Globo, para os que deram plantão e para tantos outros, como deve ter passado devagar. Dia, pensem bem, passa devagar mesmo, ali hora a hora, minuto a minuto.
Ano, não. Olhem aí, já acabou. Voou, não foi? E vêm aí aquelas matérias de jornal sobre pessoas sensatíssimas que vão aplicar o 13º judiciosamente, são lindas aos 60 anos, malham todo dia, namoram muito e viajam ao exterior uma vez por ano - ou seja, essa gente insuportável que por aí abunda. Mas, ai de nós, a maioria não é bem assim e vamos passar mais ou menos do mesmo jeito, só que mais velhos e mais chatos, com a exceção de crianças, que ficam mais velhas e menos chatas, até começarem a padecer de adolescência. É, ninguém escapa, é isso mesmo; de um jeito ou de outro, acabamos com uma ou várias razões para lamentar que mais um ano de vida se foi, assim sem mais nem menos.
Ainda mais razão terão os nossos governantes. O ano inteiro transcorrido e o dr. Renan Calheiros praticamente paralisou o Senado. Prenderam gente a torto e a direito, mas ninguém ficou preso, nem mesmo quem confessou crimes. Ficaram presas, sim, junto com homens em celas superlotadas, algumas mulheres humildes. E isso é só o que a gente por acaso sabe. E o Nosso Líder, que um dia desses vai se chamar Lula, o Grande ou Lula César ou Lula Magno ou São Lula, tem toda a razão em acreditar que precisa ficar bem mais tempo no governo. O PAC não andou, muito se conversou e pouco se investiu, muito se discursou, muito se bravateou, mas, de concreto mesmo, quase nada se fez, ou praticamente nada. Reformas, nem pensar, isso também é coisa prometida para o futuro e, portanto, já é passado. Nem secar o Rio São Francisco, o que parecia todo acertadinho, ele secou. É, só cego é que não vê. É claro que ele precisa de muito mais tempo. Ou vocês pensam que não fazer nada não toma tempo? Todo mundo acha que o emprego dos outros é mole.
O Estado de S. Paulo 2/12/2007