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A linguagem do verso

 

Sabemos que a poesia é a linguagem primeira do homem. Primeira, primária, primeva, primitiva. Nem por outro motivo os primeiros livros religiosos do homem surgiram sob a forma de versículos, isto é, pedaços da linguagem com um sentido completo, ganhando cada palavra que deles, versículos, faz parte, uma concentração de significados e ao mesmo tempo uma clareza de mensagem que a transforma em ensinamentos de como se deve agir e pensar diante de uma realidade conhecida. Tivemos versículos desse tipo tanto na Bíblia como nos livros sagrados da índia, no Kalévala da Finlândia, nos textos morais de Confúcio.


A poesia, tal como se desenvolveu em toda parte, jamais deixou de pertencer a uma categoria de texto que se preocupa com a atitude do indivíduo isolado perante os "outros" que o cercam.


Já tratei, em vários ensaios recentes, da ascensão feminina ao mundo antigamente masculino da poesia, mostrando de que maneira temos hoje, no Brasil, um número extraordinário de mulheres fazendo poemas que são agora parte integrante da literatura brasileira, o que não acontecia antes de, por exemplo, Cecília Meireles, para darmos uma explicação de alto nível.


Poemas saídos agora, de uma nova voz feminina, Elizabeth Gontijo, mostram versos que se bastam como versos que têm uma boa simplicidade. Como estes, chamados "Seiva": "Surpreendidos: / em fímbria de pétala, / segredo de semente/ em âmago de palavra, / principio de silêncio".


Os versos falam também na palavra Verbo com inicial maiúscula, como neste poema "Grifo": "antes do primeiro traço no barro/ do primeiro abrigo na pedra, / da primeira chama/ do primeiro gesto/ em todo o universo, / a marca indelével: / Verbo".


Escrevendo em versos que não escondem seu parentesco, vocabular e rítmico, além de seu tom quase religioso, com os versículos de sempre, Elizabeth Gontijo faz versos assim:


"Hoje, / quando na pedra/ em seu corpo rijo/ reconheço um fóssil qualquer, / arrebata-me/ saudade/ de um sono primordial, / quando nela, / ainda barro e humo, / Deus sonhava nossa humanidade".


A medida do verso, a métrica, o ritmo, a cadência, a pulsação de um grupo de palavras dispostas com determinado jeito e intenção clara, tudo o que dá à poesia seu caráter de canto, de cântico, de cantiga, de peça-oral vocabular, de monólogo cantado em silêncio, tudo está ligado a movimentos e ritmos da vida comum dos homens, a seus ritos cotidianos e a peculiaridades do exercício de uma função.


Além do versículo, religioso ou não, devemos acentuar que o verso grego reproduz o percurso feito por um dançarino ao redor de um altar ou de um túmulo e a cesura vinha a ser a marcação da metade do caminho percorrido.


Assim, palavras, raízes, prefixos, sintaxes e arranjos vocabulares de tempos diferentes se unem num poema, como acontece em momento do livro de Elizabeth Gontijo, que luta corajosamente por seus versos e seus versículos.


"A palma e o verso", de Elizabeth Gontijo, é um projeto gráfico de Marconi Drummond, de Belo Horizonte, e sai com ilustrações da autora. Orelha de Bartolomeu Campos de Queirós, que diz: "Em `A palma e o verso' o leitor, mais que abrir páginas, abrirá portas. E tantas são as paisagens que só o silêncio a que a poesia nos convida, tem olhos para tocar. Elizabeth Gontijo, em seu longo percurso pela literatura, encanta-nos agora com mais poesias que amparam nosso verso suspenso na palma de sua mão. Seu ofício nos leva a "tomar da palavra" para interrogar nossa própria humanidade".


Tribuna da Imprensa (RJ) 27/11/2007

Tribuna da Imprensa (RJ), 27/11/2007