Se há coisa que nos conforta é isso, a certeza de termos zelosos guardadores. E eles são muitos, ao menos em nossa infância
Anjos estão presentes tanto no Antigo como no Novo Testamento, mas de maneira bem diferente. No caso do Antigo Testamento, são figuras freqüentemente poderosas, mas complexas; a certa altura até rebelam-se contra o Senhor e são arremessados para o Inferno. E temos o anjo que expulsa Adão e Eva do Paraíso, o anjo que luta com Jacó... No Novo Testamento é diferente. Já no início do texto, temos um anjo anunciando a Maria que ela será mãe, e, a partir daí, os anjos são sempre figuras protetoras, culminando com a imagem do anjo da guarda, designado para acompanhar e proteger cada ser humano. Ainda lembro o começo da oração que aprendi no Rosário: "Santo anjo do Senhor/ meu zeloso guardador..."
Meu zeloso guardador. Se há coisa que nos conforta é isso, a certeza de termos zelosos guardadores. E eles são muitos, ao menos em nossa infância: os pais, os professores. À medida que o tempo passa, porém, fica claro que um adulto tem de cuidar de si. É uma coisa que aceitamos, mas sempre com lamentosa nostalgia. Estamos sempre em busca do nosso anjo da guarda. Nesses tempos céticos, porém, as pessoas já não confiam muito em orações, nem mesmo em anjos. Num conto famoso de García Marquez, um anjo cai numa aldeia colombiana. Mas, para começar, não é um querubim rechonchudo; é um velho cujas asas, feitas de penas de galinha, estão cheias de piolhos. O camponês, dono da casa, trata o recém-chegado sem a menor cerimônia; tranca-o no galinheiro e cobra entrada dos visitantes que ali acorrem para ver o estranho anjo. Mas, claro, isso é o realismo mágico que numa época caracterizou a literatura latino-americana; hoje somos mais realistas e menos mágicos. Queremos proteção, mas sabemos que temos de pagar por ela. E pagamos: pagamos para o personal trainer e pagamos para essas pessoas que, em número cada vez maior, se oferecem para fazer companhia, proporcionando-nos assim apoio emocional: o acompanhante pessoal. Um dos anúncios publicados na internet, num português não exatamente brilhante, diz: "Trabalho como orientador pessoal. Não é serviço de psicologia e sim um amigo pessoal para todos os trabalhos que a pessoa precisa, seja motorista particular, acompanhar em lugares em que a pessoa não quer ir só, orientações espirituais. Sou bilingüe, universitário, 44 anos, boa aparência". Honorários: R$ 80 a hora, mais despesas.
É terapia, isso? O anúncio acima faz questão de dizer que não é. Terapia, ao menos do ponto de vista médico, é uma atividade que segue princípios, normas, rotinas. Por exemplo, o tempo da sessão analítica é rigorosamente controlado, e um livro sobre psicanálise, que no passado fez muito sucesso, tinha como título exatamente uma alusão a isso: A Hora de Cinqüenta Minutos. Já das pessoas que se oferecem para fazer companhia não se pode esperar interpretações. Elas são acompanhantes, são interlocutoras, mas o seu principal objetivo é evitar a solidão. Que é um problema cada vez mais freqüente. A Veja da semana passada tinha uma matéria sobre os "hikimori" (reclusos), pessoas que por assim dizer retiram-se do mundo e passam a viver em solidão, não raro por anos a fio. E não é pouca gente: os cálculos estimam que os "hikimori" são cerca de 1 milhão de pessoas, em sua maioria jovens.
Uma situação difícil de suportar; ao fim e ao cabo, somos seres gregários, precisamos da companhia de nossos semelhantes. Que isso tenha de ser obtido mediante pagamento é lamentável, mas pelo menos trata-se de um recurso disponível. Ruim mesmo ficará a coisa quando o anjo-da-guarda bater à nossa porta procurando um acompanhante pessoal.
Zero Hora (RS) 25/11/2007