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Lucas Moreira Neves, Dom

Tenho uma secreta simpatia por esta semana depois da Páscoa. Nem tão secreta, tudo somado, já que estou falando dela e até me proponho confessar-lhe a razão.

Os estudiosos da antiguidade cristã sabem que na Igreja dos primeiros séculos os neófitos, batizados invariavelmente na Vigília Pascal, permaneciam, na semana seguinte, juntos, em um local, completando sua formação. Só no domingo seguinte ao de Páscoa despojavam-se das vestas brancas do batismo - por isso o domingo se chamava "in Albis" - e voltavam para casa após a Quaresma, voltavam à sociedade, ao trabalho, às termas, marcados com a nova condição de cristãos.

A estes homens e mulheres punha-se de imediato uma grave questão: Como comportar-se em uma comunidade não-cristã, indiferente e até hostil ao cristianismo? Professar-se cristãos? Mas então era normalmente expor-se a toda espécie de vexações, à perseguição e até ao martírio com o derramamento do próprio sangue. Calar-se? Neste caso era deixar de ser testemunhas, de dizer aos outros a própria fé e portanto deixar de difundi-la. A Eucaristia da qual eles participavam antes da vola ao mundo lhes falava, pela 1a carta de São João, da "arma que vence o mundo - a nossa fé"; do Evangelho de São João eles ouviam o episódio do encontro de Tomé com Cristo, o convite a enfiar o dedo nas chagas e a comovedora confissão do apóstolo, apelidado de "incrédulo": "Meu Senhor e meu Deus!" Tal liturgia era uma resposta antecipada à questão e um convite aos novos fiéis a não silenciarem a fé que acabavam de receber no batismo.

A questão é de estridente atualidade: também os cristãos de hoje se perguntam como devem comportar-se ao confrontar-se diariamente com uma sociedade que se diz pós-cristã e que, de todo modo, não vive cristãmente.

Temos um sério problema: deve-se proclamar a própria fé em um contexto como este?

Começo por notar que embora na maioria dos países - em alguns sim - a profissão da fé não produza, em reação, uma verdadeira perseguição até o martírio (é preciso evitar criar mártires), há outras formas mais sutis de perseguição: a reação de absoluta frieza e indiferença; o fato de discriminar o cristão, não deixando que ele progrida na profissão e nos encargos de maior responsabilidade; a zombaria desmoralizante.

A questão parece complicar-se com novas conotações em um mundo secularizado ao extremo como é o nosso atual em algumas áreas. Por isso não surpreende que a resposta seja mais de uma:

- há os que afirmam que, seja qual for o ambiente, é necessário manifestar a própria fé cristã;

- há os que, ao contrário, declaram que é mais prudente não expor a fé; para justificar essa posição interior e as atitudes que dela derivam, faz-se apelo a idéias como a da "intimidade e privacidade da fé", a do "cristianismo implícito" ou dos "cristãos anônimos". Não falta quem proclame que em uma sociedade pluralista não convém proclamar as próprias crenças em respeito às dos outros (mas a isso é fácil responder que o pluralismo será tanto maior quanto cada um expuser suas crenças com respeito às do próximo...).

Pessoalmente, associo-me sem vacilação àqueles que pensam que no mundo de hoje o cristão individual e a Igreja como comunidade de cristãos não têm por que impor a própria fé, mas têm o direito/dever de propô-la com vigor, clareza, pureza e integridade. E isto não em defesa de interesses próprios, mas partindo do fato de que a sociedade tem o direito de conhecer o que dizem Cristo e o seu Evangelho sobre o homem, sobre a vida e a morte, sobre o amor, sobre o trabalho, sobre a paz, sobre a família, sobre a convivência social e a solidariedade - e, muito mais ainda, sobre Deus e seu amor ao homem, sobre a oração, sobre a esperança... Ela, a sociedade, poder até rejeitar as propostas cristãs, mas os cristãos é que não podem nem devem silenciá-las sob pena de pecado: de timidez e covardia, de comodismo ou de preguiça, de desinteresse.

A postura doutrinal e espiritual que acabo de expor e que compartilho com milhões de outros cristãos e católicos - pastores, religiosos, religiosas e leigos - tem certamente repercussões no plano pastoral e até no cotidiano da existência cristã pessoal e coletiva. É, por isso mesmo, um tema vasto e complexo sobre o qual penso manifestar-me outras vezes. Por hoje, meu único desejo era o de exprimir uma convicção profunda: a de que em um mundo que, pelo secularismo põe, entre parênteses, Deus, seus direitos, sua palavra, sua presença na sociedade, os discípulos de Jesus Cristo podem e devem não só render culto a Ele no sacrário indevassável da consciência ou no interior dos templos, mas dar testemunho Dele na trama da convivência social de todos os dias.

(Com olhar de pastor, 1990.)

 

A LAVAGEM DO BONFIM: LIÇÕES DE UM EVENTO

I

Somos muitos na Bahia e um pouco no Brasil todo, a nos sentirmos interpelados pelo evento bem ou mal chamado "a lavagem do Bonfim": historiadores, antropólogos, analistas sociais, estudiosos da cultura, comunicadores, autoridades públicas civis e militares e, últimos mas não menos comprometidos, os Pastores e fiéis da Arquidiocese – sob diversos ângulos do evento e em graus diversos de responsabilidade.

Pessoalmente, recebi o primeiro brutal impacto da "lavagem" ao acender a televisão, três meses depois de chegado à Bahia, como Arcebispo, e ao ver o adro do Santuário na Colina Sagrada, símbolo maior da fé dos baianos, feito pista de dança, inundado pelo som ensurdecedor da música mais excitante que se pudesse imaginar e tomado de assalto por uma multidão promíscua, ébria de entusiasmo e de outras substâncias. Profundamente chocado, eu só pensava no Evangelho de São João 2, 13-22: "Minha casa é uma casa de oração...", e o que se segue.

Não nego que este primeiro choque tenha sido marcante. A partir daí, minha principal indagação sobre a "lavagem" foi, igual à de muitos baianos ou gente vinda de fora: como é que evoluem na história eventos como este? qual foi a evolução da "lavagem" até chegar ao ponto de hoje? Tenho recebido a resposta através de muitas leituras e de muitos ensinamentos transmitidos pelos mais competentes mestres na matéria.

Não padece dúvida que a "lavagem" nasceu como um fato exclusivamente religioso e, digamos sem titubeios, profundamente católico. As senhoras baianas que há 200, 150 ou 120 anos, em ocasiões especiais, faltando água no outeiro de Itapagipe, levavam o líquido em potes, a lombo de burro, cidade afora, até o Bonfim, e, ajudadas por suas escravas, lavavam o chão da igreja, certamente que o faziam por devoção ou promessa, sempre com espírito puramente religioso. Por devoção (esta palavra resistiu ao tempo e dura até hoje) ao Senhor do Bonfim, cuja casa elas queriam limpa e lavada.

Não deve ter tardado muito a entrar o elemento sincrético por via das escravas que seguiam suas "sinhás" e que punham no mesmo gesto de purificação do templo conotações decorrentes dos seus cultos africanos nativos.

Depois começou a penetrar um outro elemento: os dos folguedos que foram, ano após ano, condimentando a "lavagem". Referi em artigo do ano passado, baseado em documentos do século XIX (A fé, a festa e o excesso. A tarde, 11 de janeiro de 1989), as preocupações das autoridades religiosas e as medidas por elas tomadas, já há mais de cem anos, para coibir práticas degradantes que foram gradativamente penetrando na "lavagem". A intervenção mais severa e mais eficaz foi a do meu predecessor com Augusto Álvaro da Silva, nos anos 30-40, ao determinar o fechamento da igreja dentro da qual se fazia então a "lavagem". Ele fechava também, contemporaneamente, o adro da igreja. Com essa decisão ele evitava que o antigo e venerado santuário continuasse a ser teatro de cenas que nada tinham a ver com religião ou devoção ao Senhor do Bonfim, mas se haviam tornado verdadeira profanação do lugar sagrado.

De lá para cá, em virtude de circunstâncias várias - o crescimento urbano, o hedonismo avassalador, o influxo das mass-media e dos organismos estatais e paraestatais de turismo, o afrouxamento da moral - acelerou-se o processo quer de predomínio total do profano até asfixiar o religioso na festa, quer de degradação moral do mesmo profano.

A que se reduz, hoje, a "lavagem do Bonfim"? De católico nada resta, a não ser nas intenções mais íntimas e inescrutáveis de alguns. De religioso sobra somente a apressada ablução praticada pelas baianas. De folclore autêntico, pelo que é dado observar na TV ou ler nos jornais, ficam as últimas rarafeitas carruagens enfeitadas de folha de pindoba ou algum solitário cavaleiro. Da lídima cultura baiana, percebe-se com dificuldade a sombra de uma sobra, gemem os analistas dessa cultura.

A que se reduz então - teimo em perguntar a quem sabe - a famosa "lavagem"? Como a pergunta é realmente para saber, sem preconceito, sem malícia, mas também sem ingenuidade, os doutores em realidade baiana me respondem: reduz-se a um formidável, inimitável "grito de carnaval", explosão momesca de uma multidão incalculável. E a uma dose de marketing político.

Aí temos, se não me engano, um exemplo típico, verdadeiro paradigma, de um evento que, ao evoluir, viu evaporar-se e desaparecer toda a substância - o néctar original. Continua-se a dar o mesmo nome a uma realidade que de há muito alterou-se essencialmente. Dizendo isso não se faz ainda nenhum juízo de valor. Este começa no momento em que, com o sentimento correlativo, de espanto ou de vergonha, de decepção ou de raiva, se vai registrando de que elementos é feita a novíssima lavagem, ciranda pagã de Dionisios e Terpsícore, de Marte e Mercúrio, sob a regência incontrastável de Baco e Vênus. O grande ausente no variegado mosaico é certamente Ele - o Senhor do Bonfim. É preciso ter a honestidade de contrastá-lo e dizê-lo. E a coragem de aprender as lições do evento e tirar as conseqüências.

II

Conversa puxa conversa e pergunta puxa pergunta. À minha pergunta sobre a evolução histórica da "lavagem do Bonfim" responderam pessoas que considero as mais capazes na matéria: a "lavagem", que nasceu religiosa, reduz-se hoje a um misto de happening turístico-carnavalesco e merchandising político. Não posso surpreender-me que agora me perguntem se, como está hoje, a "lavagem" interfere no aspecto religioso da festa do Bonfim a ponto de perturbá-la.

Não tenho autoridade nem delegação para falar do único aspecto religioso que ainda sobrevive na "lavagem" - o das abluções de água-de-cheiro realizadas pelas "baianas". Quem, porém, como eu, percorreu os jornais do dia seguinte, terá lido não poucas declarações delas, tristes e decepcionadas por perceberem que seu ritual, para o qual muitas se preparam com exemplar seriedade, está sendo, cada ano que passa, mais asfixiado pela orgia dominante. As poucas que ainda se integram à passeata ruidosa e dissoluta - talvez 10% das que já foram outrora - e que ameaçam minguar ainda mais no ano que vem, confessam a impressão deprimente de que seu gesto religioso é simplesmente manipulado - e o que é pior, desvirtuado - pelo "show-business" de uma certa quinta-feira de janeiro.

Lembre-se o meu eventual leitor de que, ao orquestrar, no ano passado, uma guerrinha grotesca contra o arcebispo, os mass-media não o acusavam de lutar contra a profanação do adro do Bonfim (e essa é a sua luta), mas de querer vetar as "baianas" (o que era totalmente falso). Ora, o que se viu na televisão e nas fotos dos jornais, este ano como no ano passado, foi uma multidão indisciplinada, tomando de assalto o espaço a elas permitido pelo arcebispo e pela Devoção, impedindo-as de entrar e confinando-as às escadas do templo. Esta é a pura verdade que não pode ser mistificada.

Se me perguntam, agora, sobre a interferência da "lavagem" na parte católica da festa, sou obrigado a responder que é altamente prejudicial e perturbadora. Ligar o nome sacrossanto do Bonfim aos excessos viciosos da carreata é já uma forma de desnaturar o sentido religioso da festa. Mas além disso, a "lavagem" está roubando aos fiéis seu inquestionável direito a participar, naquela noite, da novena, que considero uma das coisas mais bonitas e significativas da Bahia.

Prolongando-se até tarde, a ululante carreata torna quase impraticável chegar-se ao Bonfim. Os fiéis que o conseguem, com edificante esforço, é para ter o desprazer de encontrar o santuário, aberto a duras penas, povoado por uma horda de carnavalescos em alto teor etílico, prejudicando notavelmente a piedosa celebração. Pedindo perdão por referir-me a fatos bastante repugnantes, tenho o dever de manifestar ao eventual leitor minha vergonha e indignação ao saber que, no ano passado, durante a novena da quinta-feira, um casal se exibia em indecorosas cenas de alcova, ao pé de um altar. E que, este ano, um marginal, em sumaríssimas vestes, se enfiara em um confessionário junto ao qual duas "amigas" suas simulavam sacrilegamente o sacramento da confissão, entre risadas obscenas e emanações de álcool ou de outras substâncias.

Se a "lavagem" interfere na parte religiosa da festa? Tanto interfere e perturba que, em conversa com o reitor da Basílica, com a Devoção e com antigos fiéis do Senhor do Bonfim, tem aflorado com certa constância uma proposta: a de começar a novena um dia antes e, no dia da "lavagem", nem sequer abrir a igreja. Dói muito em mim essa decisão e eu só a tomaria constrangido pela constatação de que, em uma noite da novena na Bahia católica, fiéis católicos não têm o direito de celebrar condignamente Aquele Deus crucificado que, invocado como o Senhor do Bonfim, protege a cidade que tem seu nome de Salvador e vela sobre os seus destinos.

Bem sei que "a praça é do povo" e que todos os cidadãos têm o direito e a liberdade de promover quantas "lavagens" queiram. Mas sei também que o direito e a liberdade de um - pessoa ou comunidade que seja - terminam onde começam o direito e a liberdade do outro. Acho, pois, perfeitamente injusto e lesivo que sacerdotes e fiéis, cidadãos para todos os efeitos, se vejam espoliados da sua liberdade e direito de celebrar uma antiga e venerável festa religiosa católica por não encontrarem o ambiente propício naquele templo, invadido pelos remanescentes da "lavagem".

Não considero demasiados todos os esforços que faremos com antecedência, durante o ano, em ótima sintonia com o reitor da Basílica e com a Devoção, para melhorar a situação no ano próximo. Esses esforços englobam diálogos com as autoridades, para que cesse qualquer vexame aos fiéis na novena da quinta-feira, com as entidades organizadoras da "lavagem", para que esta não se vá tornando cada vez mais mera ocasião de libidinagem, de embriaguez e de violência. E com as "baianas", a fim de que, com alguma mudança no programa, elas – mas elas só ¾ tenham acesso ao adro do Bonfim.

(Pôr-do-sol em Reritiba, 1992.)

 

UM ENIGMA CHAMADO HOMEM

Um poeta religioso, que bem poderia ser o próprio rei Davi, introduziu em um salmo sobre a majestade de Deus uma pergunta inesperada: "Que é o homem para dele te lembrares? E um filho de Adão para vires visitá-lo?" A pergunta trazia no fundo um confronto entre a magnitude de Deus e a pequenez do homem. Mas à sua própria indagação, o salmista é obrigado a responder com uma verdade igualmente inesperada: "Tu o fizeste pouco menos do que um deus, coroando-o de glória e de beleza; sob seus pés tudo colocaste para que domine as obras de suas mãos"(salmo 8,6-9; Heb. 2,6).

Bem antes do inspirado poeta de Israel, muitos outros autores, religiosos ou não, haviam feito a pergunta que muitíssimos outros vêm repetindo depois dele: "Que é o homem?" (Eu imagino freqüentemente uma outra esfinge desafiando Édipo em todas as encruzilhadas do mundo e da história e dizendo não "decifra-me", mas "decifra-te ou eu te devoro!".)

A interrogação pode ter uma dimensão meramente biológica e significar: quais são os componentes fisiológicos do homem? Qual a sua estrutura física? De que ingredientes é feita sua corporeidade? Mas pode ter, além disso, uma dimensão metafísica e querer perguntar: que existe no homem além da corporeidade? Que faculdades interiores? Que aspirações? Que destino? Pode ter uma dimensão psicológica: quais os sentimentos profundos do homem? Que impulsos o movem? Que freios o paralisam? E pode ter, enfim, uma dimensão espiritual e religiosa: que é Deus para o homem e como se vê ele diante de Deus? Como se comporta? Que atitudes toma?

Um grande pensador, inexcedível indagador sobre o homem, Blaise Pascal, deparou-se com a mesma pergunta: "Que é o homem", e viu nela o mesmo confronto entre o infinito de Deus e o finito humano. A resposta que conseguiu balbuciar foi "O homem é um caniço – mas é um caniço que pensa." Na fragilidade do caniço unida à faculdade e capacidade de pensar, Pascal identificou a originalidade e singularidade do homem.

Nem todos, porém, ao longo da história, têm respondido como Pascal. Desde que, no apogeu da filosofia helênica, se tenta dar à pergunta sobre o homem uma resposta raciocinada, os pensadores vacilaram, perplexos, entre uma visão do homem puramente idealista, espiritualista e outra puramente fisiológica e materialista. Poucos como Agostinho, nas pegadas de Platão, e Tomás de Aquino, na esteira de Aristóteles, viram o homem como um composto substancial de alma (feita para conhecer a Verdade e amar o Bem) e corporeidade, de um princípio espiritual subsistente e de um princípio material profundamente unidos. De maneira diversa mas na mesma direção, foram e são numerosos os que dão à pergunta uma resposta fundamentalmente materialista, vendo no homem um ser meramente físico e corporal que desaparece completamente com a decomposição da matéria ou um ser igual ao animal, diferente dele somente em grau, sob o aspecto físico. Essa resposta materialista está sempre de moda e reponta de um modo ou de outro nas antropologias de Hume e de Feuerbach, de Marx e de Lênin, de Freud, de Lévy-Strauss, de Foucault.

A resposta convincente não pode deixar de considerar algumas dimensões essenciais do homem. Se a resposta oferecida pela antropologia cristã é a única em condições de satisfazer plenamente, é porque ela integra harmoniosamente todas essas dimensões. Além de ver no homem o composto de alma e corpo, e em conseqüência disso, a concepção cristã do homem o vê semelhante mas ao mesmo tempo profundamente dessemelhante com relação ao animal: semelhante nas necessidades vitais e na vida sensitiva, dessemelhante nas suas capacidades espirituais.

Capacidade de pensar, apreendendo intelectualmente a realidade, julgando-a e raciocinando sobre ela e a partir dela. Capacidade de falar, exprimindo, com sua linguagem simbólica, o próprio pensamento. Capacidade de querer, isto é, de tender ao que há de bom naquilo que pensou; tender não pela mera força do instinto, por determinismo, mas com liberdade e espontaneidade. Capacidade de amar, não por simples atração mas por amor-dom, oblação, entrega. Capacidade de olhar as coisas, as pessoas, a história com senso moral. Capacidade de conhecer e contemplar, de adorar a Deus - de tender para Deus como para seu destino absoluto.

Uma diferença básica entre o homem e os outros seres, mesmo os animais superiores, é a consciência. Ele é capaz de refletir sobre si próprio, sobre sua história, sua vida. Capaz de saber o que sucede com ele próprio. Ninguém o exprimiu melhor do que Blaise Pascal: "O homem vive, sofre e morre e sabe que o faz, tem consciência de viver, sofrer e morrer. Esta autoconsciência é a marca do homem."

"Tu o fizeste pouco menos do que um deus." A palavra do salmista revela o plano de Deus sobre o homem. Este é a única criatura que o Criador quer por si mesma e não como meio. Por isso só essa criatura pode ter também o nome de filho ou filha de Deus. Por isso também ao homem foi dado dominar as outras criaturas e servir-se delas para o seu bem-estar.

Para falar da criação do homem, Teilhard de Chardin recorreu ao neologismo hominização. Não é este o tempo e lugar para debater este conceito e seu conteúdo. Só será justa a hominização se ela admitir um salto de qualidade: o instante em que, pela força criadora de Deus, nasceu o homem pensante, capaz de falar, de amar, de rezar e adorar, de ter consciência pessoal.

(O homem descartável e outras crônicas, 1995.)