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Verdi: como vencer a censura

 

O artista virou senha de liberdade. Demonstrou que a censura não atrapalha a inteligência


PRIMEIRA QUESTÃO: Verdi foi um gênio? Até hoje, alguns musicólogos negam-lhe não apenas a genialidade mas o valor. São os mesmos que não aceitam Chopin e Tchaikovsky. Não perdoam a facilidade dos noturnos, dos caprichos e das árias que fazem parte dos realejos que se tocam no mundo. Mas Chopin escreveu o "Prelúdio nº 28", Tchaikovsky deixou sua "Quinta sinfonia" e Verdi, afinal, escreveu "Othelo" e "Falstaff".


Verdi tinha 19 anos, era alto, cabeludo. Fez uma prova no Conservatório de Milão e foi reprovado: tocava piano muito mal e seu físico não ajudou. Um dos examinadores cismou: Verdi nem sabia colocar as mãos em cima do teclado.


Anos mais tarde, depois da dominação austríaca, o conservatório desejou ter o nome de um italiano ilustre e solicitou ao maestro que autorizasse a existência legal do "Conservatório Verdi", de Milão. O compositor respondeu: "Não me quiseram quando jovem, não me terão velho". Nesse meio tempo, entre outras coisas, ele havia escrito aquela terrível ária do "Rigoleto": "Si vendetta, tremenda vendetta".


Bem, a solução para os refugados era essa mesmo: Verdi se transformou no rapaz amargo e, como continuava a gostar de música, o remédio era aceitar a direção da "furiosa" de Busseto, uma banda como outra qualquer, cujo forte eram os dobrados militares de praxe e circunstância. Uma tarde, regeu Haydn diante de entendidos e recebeu a incumbência: fazer uma ópera. Verdi meteu os peitos e produziu "Orbeto", "Conte di San Bonifacio".


A municipalidade de Busseto impôs o trabalho ao Scala de Milão. A título de incentivo, a ópera foi representada numa festa beneficente. Era uma caridade do mundo oficial da música ao jovem compositor. Mesmo assim, o rapaz ficou gratificado. E, exagerando um pouco na alegria, decidiu se casar com a filha do mesmo fabricante de licores que o incentivara. Aos 23 anos, fez aquilo que no Nordeste brasileiro ainda chamam de "convolar núpcias" com Margarida Barezzi, moça de 22 anos, que lhe deu um casal de filhos -e muito azar na vida. Pouco depois, Verdi perdia tudo: os filhos e a mulher (levados pela morte) e a inspiração. Caiu na fossa e prometeu nunca mais ler uma linha de música.


Perdeu até mesmo o emprego, pois o editor Ricordi havia lhe encomendado três óperas a título de experiência. Verdi largou tudo e foi morar numa pensão, onde passava o tempo lendo a Bíblia.


Volta e meia, algum empresário desvairado sugeria que ele lesse um libreto, mas Verdi se recusava: não escreveria uma nota sequer, para todo o sempre.


Até que surgiu um desvairado mais teimoso que os outros e deixou em suas mãos um libreto de Solera, cuja primeira página trazia um nome em letras góticas: "Nabuco".


Verdi cometeu um erro: abriu o libreto ao acaso e deu com um verso perdido no texto: "Va pensiero, sull'ali dorate...". Para quem andava lendo a Bíblia, a história do cativeiro da Babilônia era interessante.]


Além do mais, a Itália vivia o seu próprio cativeiro, dominada pela Áustria. Verdi compreendeu a intenção de Solera: transpor o drama dos hebreus dominados junto aos rios da Babilônia para a sua própria pátria espezinhada pelo grande império dos Habsburgos. Não conseguiu dormir naquela noite. Os versos estavam em sua cabeça: "Va pensiero". Até hoje, esse coro de escravos serve de hino para todos os oprimidos em qualquer parte do mundo.


Dias depois, a ópera estava pronta e encenada. O povo não apenas gostou da ópera mas da mensagem que ela trazia. O nome Verdi virou anagrama: "Vittorio Emanuelle, Re d'Italia". Verdi passou a ser uma senha de liberdade. Mais uma vez, um artista demonstrou que a censura não atrapalha a inteligência -quando há inteligência.


Minimamente, o que se pede aos artistas é que eles sejam mais criativos do que os censores. As autoridades austríacas chegaram a comparecer à estréia de "Nabuco" e só entenderam que haviam comido mosca quando ouviram a platéia se levantar, durante o coro dos hebreus, cantando junto com os artistas. Houve mortos e feridos depois, mas o grão da liberdade estava plantado. A Itália, unificada, libertava-se do jogo estrangeiro.


Folha de S. Paulo (SP) 9/11/2007