Muitas das esculturas africanas que Zora e o autor destas linhas trouxemos da África estão agora em exposição no Arte Sesc, no Flamengo (Rua Marquês de Abrantes, 99). Com a morte de Zora fiz questão de promover esta exibição pública antes de montar um local permanente em que as máscaras gueledés do escultor Simplice Ajaiy, do Benin, se juntem às perto de duzentas peças que formam nossa coleção num museu Antonio Olinto - Zora Seljan que dará ao Rio de Janeiro um novo centro cultural ligado à cultura africana.
Comandados pela curadoria de Raul Lody, técnicos de várias especialidades trabalharam meses na montagem da exposição de agora, que ficará no Flamengo até o dia 25 de novembro próximo. Será então transportada para o Sesc Madureira onde estará exposta de 15 de dezembro a 30 de março de 2008.
De 19 a 23 de novembro, ainda no Arte Sesc, no auditório, haverá um seminário intitulado "Alma da África", de que participarão Alberto da Costa e Silva, a professora Yeda Pessoa de Castro, Raul Lody, Bira de Xangô e este colunista.
Haverá, ainda, a leitura da peça de Zora Seljan "Exu, cavaleiro da encruzilhada", que foi encenada em Londres em agosto de 1991 no Barons Court Theatre. A peça é baseada na personalidade de Exu, que vem a ser a idéia de que a realidade possa ter dois lados aparentemente irreconciliáveis, que aparece numa lenda iorubá colhida por Pierre Verger na África e no Brasil.
A exposição africana, depois dessas duas mostras no Rio de Janeiro até 30 de março, será levada a São Paulo e, em seguida, a Salvador. As máscaras gueledés, as figuras de Xangô, os Exus que protegem as casas e os campos, fazem todos parte do mundo mágico em que o africano vive normalmente, junto com a dança que integra a sacralidade geral do continente e da própria alma da África.
Homens, bruxas e deuses dançam pelas estradas, pelos terreiros, pelas ruas das cidades, pelas clareiras. Dançam na festa do inhame. Ao longo da África, os deuses - sentados, andando, olhando, em movimento ou parados - velam sobre os atos da criação. Velam sobre os homens e as mulheres, os mercados, nos seus atos de compra e venda, nos seus amplos e livres movimentos de amor e de alegria.
As árvores africanas têm seus deuses. Até os galhos podem ter espíritos particulares morando neles. Se o africano deseja cortar um ramo da árvore, pede licença ao deus da árvore. Se quiser modelar um vaso, pede licença ao deus do barro. Se quiser atravessar um rio, pede licença à deusa do rio, Iemanjá ou Oxum.
Deuses e deusas estão em toda a parte, tomando conta das coisas, dos objetos, das montanhas, dos caminhos, das curvas e cruzamentos, das viagens e demandas, das plantas e das águas profundas, das ondas e das correntezas, das riquezas e dos casebres, das roupas e das frutas, da comida e da bebida.
Assim vejo os artistas honrando seus deuses por toda a África. Vejo o escultor Simplice Ajaiy, na sua aldeia de Idigny no reino de Keto, arrancando pacientes lascas de seu pedaço de madeira para criar as espantosas máscaras gueledé que, durante as festas sagradas daquele ano, reuniram todo o povo durante semanas em que ele dançava durante horas a fio sob a proteção das máscaras milagrosas.
Foram dezessete dessas máscaras que Zora e eu troxemos de nossa visita a Idigny, com a aprovação do povo e dos sacerdotes locais, desejosos de que suas belas máscaras fossem mostradas num país longínquo em que eles sabiam estar guardada a tradição africana, inclusive religiosa, que deitara entre nós raízes fortíssimas, não só no Nordeste em que os africanos escravisados primeiro trabalharam, mas também nas mais variadas partes do país.
Foi com muita emoção que vi as esculturas que Zora e eu mantínhamos em casa chegarem a um público maior. Foi um passo importante no plano de elas virem a ser inteiramente disponíveis a uma visitação permanente, num museu de arte africana que será montado no Rio de Janeiro.
Tribuna da Imprensa (RJ) 23/10/2007