A presença de J. J. Veiga na literatura brasileira foi de uma espantosa limpidez. Tendo com toda a justiça e verdade sido classificado como surrealista (é aceitável dizer-se que o único outro escritor nosso capaz de merecer esse adjetivo seja o Jorge de Lima de "O anjo") ergueu J. J. Veiga sua obra com a segurança de um sereno dominador da palavra.
Estive recentemente em Goiânia para a inauguração de um "Espaço J. J. Veiga", instalado pelo Sesc-Goiás. Falei então de meu entusiasmo pela obra veiguiana e citei, entre outras narrativas dele, "Os cavalinhos do Platiplanto", em que a prosa brasileira se tornou também poética sem ter deixado de perder sua força como prosa.
Dirigiu minha viagem o escritor Luiz de Aquino, exímio na luta em favor da literatura brasileira como base do desenvolvimento de um povo. Recebido na Academia Goiana de Letras, tive a alegria de ouvir duas análises, diversa uma da outra, de livro meu, "A casa da água".
Heloísa Helena de Campos Borges, presidente da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás e Professora da Universidade Católica local, analisou o universo feminino do mundo africano mostrado no romance, e José Fernandes, da Academia Goiana de Letras, estudou a linguagem em geral e as palavras em particular usadas pela comunidade afro-brasileira residente na Nigéria.
O que notei, principalmente, em Goiânia, foi a extraordinária vitalidade de seu mundo cultural, de que saiu um dos grandes poetas deste país em qualquer época: Gilberto Mendonça Teles.
Dos livros que li recentemente, destaco um, de contos, de autora goiana, em que a técnica de contar histórias atinge um nível raro de aproveitamento vocabular. Isto porque a autora revela, no seu estilo, uma verdadeira alegria de narrar. Trata-se do livro "Hum...Sei não!", de Lêda Selma, original a começar pelo título do volume. Seus personagens são em geral de um à-vontade na vida, homens ou mulheres, que a todo momento saltam a normalidade do viver cotidiano.
Eis como Lêda Selma descreve uma cidade baiana, real ou inventada: "Urandi é uma cidadezinha do sertão baiano, bucólica e aconchegante, cujo padroeiro é um santo não só famoso por estar em mais de um lugar ao mesmo tempo, mas, sobretudo, por seus dotes casamentícios. Que o digam as donzelas desencravadas e as viúvas reaproveitadas".
Figuras de uma comunidade, hábitos, diálogos, normais ou anormais, entre vizinhos, entre conhecidos, entre desconhecidos, vão, ao longo das histórias de Lêda Selma, revelando um tempo e um espaço e, com isto, cumprindo a missão do escritor, que é, não só dominar sua linguagem e dar-se bem com as palavras, mas também testemunhar aspectos dos caminhos que todos percorremos - repita-se, no tempo e no espaço que nos é dado viver.
Quando falo em escrever com alegria, é que identifico, na literatura da autora de "Hum...Sei não!", um novo modo, talvez zombeteiro, talvez tolerante, de ver e descrever as fraquezas dos personagens que inventa, ou copia. Em certas páginas, a escritora dá a impressão de que tem sempre esses personagens diante de si, na vida real, e vai, muito alegremente, transmitindo diálogos, escolhas, desejos, que vê na sua gente e na sua frente.
O livro de Lêda Selma é de contos, de histórias isoladas, mas, de vez em quando, há nele uma sucessão de acontecimentos e de personagens em histórias sucessivas, como se de repente um conto se transformasse em narrativa maior ligada a uma seqüência.
Dentro da contística brasileira pode, a partir de agora, ser considerada essa autora como tendo um lugar de relevo na técnica de narrativa que Lêda Selma vem usando em seus livros. Não há um modo exclusivo de se chegar a um jeito pessoal de contar histórias. Original foi J. J. Veiga em sua visão poética de narrar. O mundo, diferente e alegre, de "Hum... Sei não!" leva a arte do conto a outras regiões da literatura.
Coordenação gráfica da Editora Kelps. Capa e ilustrações de Roos, revisão de Angela Jungmann. Orelha de Maria de Fátima Gonçalves Lima e quarta capa de Nelly Novaes Coelho e A. B. Mendes Cadaxa.
Tribuna da Imprensa (RJ) 16/10/2007