É véspera de Natal e o homem de repente descobre que está sozinho e lúcido. Até o meio-dia ele teve os colegas, recebeu e distribuiu abraços, viu amigos e inimigos levarem embrulhos e alegrias. Ouviu queixas sobre o preço do presunto e a qualidade dos figos e soube que os vinhos nacionais andavam bons, muita gente deixou de comprar o Grandjó e o Médoc para prestigiar a vinicultura pátria.
Mas ele nem tinha do que se queixar. Tanto lhe fazia o preço do peru ou da salsicha em lata, do Chateauneuf-du-Pape ou do rascante de Nova Iguaçu. Seu Natal seria frugal e denso, como uma passa. Talvez fosse assistir a saída da Missa do Galo e depois, se fizesse calor, tomava mesmo uma Coca-Cola.
E no início da tarde, ele atravessa a avenida ensolarada e nota que ficou sozinho na imensa cidade. Duas horas antes e a multidão ali estava, histérica e feliz, sobraçando embrulhos iguais e desiguais. Foram todos para casa agora, gozar o Natal do mundo, e deixaram ao homem sozinho a tarefa de guardar a cidade e defendê-la -como um cruzado- da solidão e do vazio.
Um ou outro ônibus retardatário passa ainda, lá dentro há embrulhos e homens, mais embrulhos que homens, ou tantos homens quanto embrulhos, e ele é uma coisa só na tarde de Natal que está chegando, e vão todos para outros bairros e casas, homens se misturarão com outros homens, embrulhos serão misturados a outros embrulhos e os sinos tocarão em breve, abençoando a festa dos homens de boa vontade.
As casas comerciais estão cerrando as portas, o ferro enrugado cobre as vitrines e os cartazes com Papais Noéis gorduchos que riem, as bochechas em tecnicolor, a barba mais que branca dos velhinhos bem-intencionados. Dos bares que se fecham, saem os últimos fregueses, trocando pernas e saudações.
São quatro horas e ele não encontra quatro amigos na tarde para repartir o pão de sua solidão e o vinho de sua vontade de amar alguém.
Vai atravessar a rua pela faixa, mas para. A avenida está deserta e ele se dá ao luxo de ir pelo meio da rua, pisando confiante e impune o chão da cidade que lhe sobrou, cidade que é seu presépio, seu Natal.
Durante um mês, milhares de pessoas mais ou menos iguais a ele prepararam uma festa nas ruas e na hora do Natal foram para suas casas, gozar avaramente a felicidade lambuzada de rabanadas e doces. Ele não tem mais casa, não tem mais família, gastará sozinho e lúcido o Natal que os outros lhe abandonaram, não sabe se por castigo ou prêmio.
Vê a igreja perto de seu trabalho. Passa por ali todos os dias e nunca reparara na igreja. Mas há muito perdera a vontade de entrar nas igrejas e rezar. Perdera a fé também, quando começara a perder as coisas da vida: os pais, os irmãos, o resto. De qualquer forma, a igreja existia ali, independente dele e de seu Natal. Tendo ou não tendo fé, pouco importava, importava é que a igreja fazia seu Natal de pedra e ele já não fazia Natal nenhum.
Mais tarde, o povo entraria para as missas da meia-noite, Mas a nave agora estará escura e o altar sem flores desnudo como sepultura. Mais tarde haverá povo e órgão tocando o "Noite Feliz", e ele poderia se misturar aos outros e gozar o Natal de luzes e dos cânticos.
Não queria, porém, gozar o Natal das igrejas. Ele velaria, sem lágrimas, até acreditar que a noite seria igual a todas as noites. Da torre batem o sino. Ele se esquecera pela cidade e aí estava, seis horas já. Breve viria a noite, noite de Natal imensa e boa agasalhando os homens de boa ou má vontade. Só ele não tinha vontade alguma e não merecia Natal.
De outras igrejas, outros sinos confundem seus ecos na tarde e nos seus olhos. Desde o meio-dia gastara seu Natal à toa. E agora, para ele, os sinos fazem seu festival anunciando que a noite chegou. É Natal no mundo. Em outros anos, era a noite das noites, as filhas botando na vitrolinha laqueada o "Adeste Fideles" de que ele tanto gostava.
E ainda está ouvindo um último sino quando entra no bar e procura esquecer o Natal, esquecer os outros e, sobretudo, esquecer-se de si mesmo.
Folha de S. Paulo, 25/12/2009