Perdemos na semana passada, aos 96 anos de sua idade, a escritora Amélia Sparano, que deixou a Itália na juventude, no decorrer da Segunda Guerra Mundial do século XX. Tornou-se aqui uma escritora também brasileira. Precisamos lembrá-la como poeta e ficcionista brasileira, dominando nossas palavras como o fizera antes com seu belo idioma italiano.
Poeta capaz de recolher memórias que não se mostram apenas como suas, mas também como das Terras que reúne em si - a Itália e o Brasil - conseguiu Amélia Sparano, em um dos seus livros, uma recolta de versos a que deu o nome de "Meditando", ir além das palavras e dos ritmos para pegar um fluxo interno em que se forma a alma do poema. Daí, o conseguir ela também dar toda a atenção ao som poético, àquilo que o aproxima do cântico e de um modo equilibrado e livre que o poema tem não só de ser lido, mas também de ser ouvido.
A beleza da palavra colocada a serviço da poesia alcança, em idiomas ligados mais a vogais do que a consoantes - como o italiano e o português - um nível raro de expressão, inclusive pela força do som. Claro que também outros idiomas possuem sua beleza própria e foi a poesia inglesa que inspirou uma criança africana a dar uma das melhores definições de poesia que existem.
A história foi contada pela escritora dinamarquesa Isak Dinesen no livro "Out of Africa". Em suas noites de solidão no Quênia, onde tinha e dirigia uma fazenda de café, costumava ela (cujo nome verdadeiro era Baronesa von Blixen) ler em voz alta poemas ingleses. Um menino quicuio, de pele negra que trabalhava para ela, ficava num canto, olhando, escutando, quieto. Chegou um tempo em que a escritora passou noites sem ler. Notou que o menino continuava no seu canto, como esperando, até que ele tomou coragem e pediu: "Madame, fala como chuva outra vez, fala."
Diante dos versos de Amélia Sparano, tanto em italiano como em português, sinto que eles soam como chuva caindo. Em "Caminhando", ela se dirige ao seu companheiro de viagem: "... eu nunca poderei ver com teus olhos/ nem saber se o teu verde é igual ao meu. / Mas teu sol é meu sol." Este é seu ritmo.
Num de seus livros, Amélia fez um balanço poético da sua caminhada e disse: "Não alcancei estrelas. / Cato apenas pedrinhas / luzidias, coloridas, / que brilham no meu chão. / Não plantei vinhas, / não cultivo o trigo, / não desbravo o sertão. / Meu braço é fraco, / pequena a minha mão. / E só cultivo flores / no acanhado espaço / de meu terraço. / Salpico de gerânios o cinzento / no topo deste morro de cimento."
O que, em primeiro lugar, se destaca no romance de Amélia Sparano, "A espectadora (Entre o ocaso e o amanhecer)", é sua agilidade narrativa, pois, como se trata de uma história que repousa sobre personagens, a dinâmica do relato mantém um movimento incessante de situações que a romancista, como "espectadora", acompanha, minuto a minuto, de tal modo que é toda uma fascinante faixa de emoções que ela, como narradora, passa para o leitor.
Como romancista, mantém Amélia Sparano uma posição de intérprete das gentes. Sua visão de "espectadora" mostra-a profundamente interessada nas coisas. A velha declaração latina - "Nihil humanum a me alienum" - cabe por inteiro em sua vida literária. Ao descrever a festa do romance, o menor detalhe é importante.
Seu livro "Meditando" colhe toda uma experiência de vida, transformando-a em palavras e ritmos e, colocada entre dois idiomas em que se sente inteira, ergue a poeta cada um deles como propriedades suas, que o tempo foi misturando e levando a um estado de meditação permanente.
As palavras que entram na meditação, que a formam e a que dão substância, são as mesmas, embora com dois modos de se apresentar como chuva, vivendo sob as palavras de dois idiomas e conseguindo, em ambos, realizar uma poesia com a convicção de que ela pode melhorar o homem em sua busca de entendimento. Poeta, sabe que a palavra é divina (este é o começo de um de sem poemas: "A palavra é divina / E fugidia.") É preciso, por isto, dirigi-la a todos, sem parar, como está nestes três versos de Amélia Sparano: "Escrevo, escrevo, compulsoriamente, / escrevo a todos / sem saber a quem."
Meditando e escrevendo, Amélia Sparano capta os momentos que a memória libera e com eles faz uma poesia que passa a existir em nós, com a força de suas palavras, de suas imagens, de seu ritmo ("a poesia é a linguagem que canta", disse Paul Eluard), em cada caso fazendo-nos meditar. Contudo, é preciso pressa, "antes que areia naufrague / e que se empedre o canteiro".
Como boa poesia, os poemas de Amélia Sparano fazem bem à gente e conseguem levar-nos a ver um "Deus vivo em toda criatura". Fez-me bem a mim. Perdemo-la e, com isto, perdeu o Brasil de hoje uma poesia que nos representa e explica.
Tribuna da Imprensa (RJ) 07/10/2008