O Nobel de Medicina não costuma provocar sensação, ao menos entre o público em geral – nada que se compare ao Oscar, por exemplo – mesmo porque na maioria das vezes são premiados cientistas que se distinguem por pesquisas básicas, importantíssimas, mas que escapam ao entendimento do comum das pessoas.
É muito raro que o prêmio seja dado a um clínico, a um cirurgião, a um sanitarista. Mas este ano e num certo sentido, a premiação fugiu à regra. Entre os distinguidos com o Nobel de Medicina estão os franceses Luc Montagnier e Françoise Barre-Sinousi, que há exatos 25 anos isolaram o vírus causador da Aids, uma descoberta cuja importância não precisa ser enfatizada. Por coincidência, o outro cientista premiado (por descobrir que o papilomavírus causa câncer cervical), o alemão Harald zur Hausen, também trabalha com virologia.
A premiação de Luc Montagnier tem um significado especial. O cientista protagonizou, durante muito tempo, uma das mais amargas e violentas disputas ocorridas na ciência contemporânea. Tudo começou naquele mesmo ano de 1983. Um proeminente pesquisador do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos, o Dr. Robert Gallo (este nome condicionava destino: ele gostava, como se viu depois, de cantar de galo), anunciou que um vírus por ele isolado do sangue de pacientes com Aids seria a causa da doença (não era).
Quase ao mesmo tempo, no Instituto Pasteur de Paris, o Dr. Luc Montagnier também isolou de pacientes com Aids um vírus que, este sim, de fato se comprovou ser a causa da doença e que foi depois batizado como HIV, vírus da imunodeficiência humana.
Antes que a descoberta fosse reconhecida o Dr. Montagnier pessoalmente entregou uma amostra de seu vírus ao Dr. Gallo. E daí veio toda a confusão. O Dr. Gallo disse que não deu importância ao presente, e que deixou-o no freezer, indo jogar vôlei. Meses depois anunciava a descoberta do vírus da Aids. Que era, claro, o mesmo vírus do Dr. Montagnier. E a coisa não ficou por aí. Gallo propôs um teste para o HIV e o mesmo fizeram os franceses, cujo teste era melhor, mas que foi preterido pelo governo americano. Seguiu-se um processo judicial, que o governo dos Estados Unidos perdeu, e um conflito que acabou adquirindo dimensão política internacional, opondo Estados Unidos e França – o Instituto Pasteur, onde Oswaldo Cruz estagiou, é a jóia da coroa da ciência francesa.
Em 1992 a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, sustentando que a amostra usada por Gallo continha o material do Instituto Pasteur, e também o Instituto Nacional de Saúde condenaram o cientista por sua conduta (ele apelou e foi absolvido). Nesse meio tempo, Gallo, que tinha boas conexões na mídia, tornou-se uma atração internacional, viajando pelo mundo todo. Na verdade, suas relações com Montagnier não eram só de conflito; os dois até colaboraram em artigos científicos.
Mas o Nobel agora funcionou como veredicto, confirmando Montagnier como o descobridor do HIV e lembrando que a ciência não está imune (bom termo, aliás) aos conflitos de interesse e às vaidades pessoais (das quais os vírus estão, ao menos, livres). Ao fim e ao cabo, porém, a verdade acaba aparecendo. E na ciência, como na vida, a verdade é o que importa.
Zero Hora (RS) 07/10/2008