RIO DE JANEIRO - O editor Ênio Silveira estava engraxando os sapatos numa dessas cadeiras altas que mal comparando parecem o trono de um soba nos confins da África. Ele gostava de conversar com gente do povo e perguntou se o engraxate temia o comunismo, fantasma que o governo de então considerava na iminência de tomar conta do Brasil.
Lustrando o bico do sapato com aquele pano molhado e na cadência do "Tico-Tico no Fubá", o engraxate tranqüilizou o editor: "Pode deixar, doutor, se o comunismo vier, nós avacalhamos ele".
Desconfio que já fizemos o mesmo com a democracia. Nem o STF com sua decisão de instaurar a fidelidade partidária conseguirá elevar nossas práticas políticas a um patamar lógico e decente. Impossível cobrar fidelidade a tantos partidos pulverizados em lugares comuns ideológicos, criados e mantidos por interesses exclusivamente eleitorais.
No Brasil, deve ser mínima a faixa dos que votam num determinado partido. Alguma coisa na base do 0,2% do eleitorado. O resto vota em candidatos. São eles que empolgam o cidadão que se identifica com um Clodovil, um Gabeira, um Pedro Simon ou Jader Barbalho. De um partido inexistente, o finado Enéas teve mais votos do que Leonel Brizola, político histórico, numa disputa presidencial.
Collor se elegeu na soma de pequenos partidos, Ulysses Guimarães, patriarca do maior partido nacional, o PMDB, ficou entre os últimos. Para eleger Senado e Câmara, nenhum eleitor pensa nos programas partidários, que uns pelos outros pregam a mesma coisa.
Com dois partidos apenas, um conservador, outro liberal, acredito que os candidatos melhor se arrumariam no tabuleiro e, aí sim, a fidelidade partidária seria indispensável ao funcionamento da democracia.
Folha de S. Paulo (SP) 9/10/2007