Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Oração pelo negro

Oração pelo negro

 

Após terminar a Oração pelo índio, primeira parte da tetralogia do Discurso das gentes do Brasil, Albuquerque Pereira acaba de ultimar outro alto cometimento épico e ético, esta Oração pelo negro que se encontra nas mãos do leitor. Dizemos alto cometimento por nos parecer justamente isso a aventura temerária de narrar, em quase quinhentas oitavas heróicas, em perfeitos decassílabos de índole camoniana, os cinco séculos da história da raça negra transplantada compulsoriamente para o Brasil, dos primórdios do tráfico até a longa e acidentada busca pela liberdade institucional, seguida pelo anseio por uma plena realização social e moral que se mantém até nossos dias.


É de se destacar que se a oitava heróica domina as 25 seções do poema, a décima terceira seção, justamente dedicada a Zumbi dos Palmares, é composta em décimas, décimas de cunho popular, com seus decassílabos quase sempre acentuados na terceira sílaba, o que as caracteriza como as décimas típicas do martelo agalopado da tradição oral nordestina.


De importância à altura dos versos são as notas, o imenso aparato crítico, histórico e filológico de que o próprio autor dotou seu poema, outorgando-lhe uma espécie de guia de leitura que, mais do que a função de escoliasta dos versos, consiste num verdadeiro tratado sobre as vicissitudes da raça negra escravizada no Brasil, até o advento da Lei Áurea, e desta até os dias de hoje. É raro encontrar-se um poeta capaz de enriquecer a sua obra com tão útil apêndice que, por si próprio, já constituiria um livro.


Partindo das origens geopolíticas e econômicas do fenômeno da escravidão negra, Albuquerque Pereira descreve em seus decassílabos heróicos o drama da travessia atlântica, a chegada e adaptação na nova terra, o sincretismo religioso com o Catolicismo, o triste calvário dos castigos corporais, as insurreições e fugas – com destaque evidente para Palmares –, a longa batalha pela abolição e seus heróis: Castro Alves, Joaquim Nabuco, Luís Gama, José do Patrocínio, entre tantos outros, a resistência escravocrata, a promulgação da Lei Áurea, e as angústias e carências que, 120 anos após ela, ainda atingem grande parte dos descendentes de escravos no Brasil.


Segundo volume da tetralogia ambiciosamente planejada pelo autor, a Oração pelo índio e a presente Oração pelo negro serão completadas com a Oração pelo romeiro, dedicada aos beatos tão insensivelmente massacrados nos movimentos messiânicos de Canudos, Contestado e Caldeirão, e com a Oração pelo retirante, que tem por tema o secular e cruciante drama das secas no nosso semi-árido. No todo, Albuquerque Pereira intenta a redenção lírica de episódios históricos que um Euclides da Cunha chamaria, sem vacilação, de crimes e loucuras da nacionalidade, feridas sempre abertas na alma da pátria, que o poeta busca, com a beleza de seus versos, compreender e apaziguar.


Jornal do Commercio (PE) 26/9/2007