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Toda uma poesia

 

A cada semana em que faço a escolha de um livro em geral novo a ser aqui analisado, deparo com uma quantidade de obras de poesia que superam em muito a produção em prosa. O mesmo acontece com o texto de hoje, em que avulta uma poesia de alto nível que vem colocar o poeta Reynaldo Valinho Alvarez na vanguarda mesma da poesia brasileira de hoje e de sempre.


Em "Corta a noite um gemido", o domínio que tem o poeta sobre seu verso, seu ritmo e seu conjunto vocabular de significados abre um capítulo particular do uso da palavra poética em nossa literatura. Seu verso ganhou, com o tempo, uma certa ductilidade, no sentido de que revela uma dureza de significado com palavras sólidas e rijamente plantadas em seu lugar, mas ao mesmo tempo, capazes de escoar como um rio de palavras, implacável no seu caminho e nas suas rimas insubstituíveis, inevitáveis, que se alimentam de seu próprio som, determinadas e firmes, como se dissessem: somos o que somos, puras palavras afins, com sílabas finais que dão sentido às coisas.


Há forças poéticas postas em palavras que vêm tão de dentro que dão às vezes a impressão de que o bom poeta passa a vida escrevendo e erguendo um só poema, embora coloque nele todo um entendimento do viver o tempo que é dele e nosso. Para chegar a esse ponto, lança Reynaldo Valinho Alvarez mão das palavras mais veementemente expressivas, com suas rimas ao mesmo tempo seguras e tranqüilas, em que se conta a história do homem tanto na terra como em outros planos em que ele também viva.


No livro de agora, depois dos conjuntos de dez e de oito versos, com rimas ao modo camoniano, chega o poeta ao âmago de seu poema em dez páginas com um total de 200 versos, escritos e rimados de dois em dois, num poema que tem o título do próprio livro e no qual traça o poeta seu evangelho.


Eis os últimos dez versos desse evangelho: "Por que fuzis e canhões,/ metralhas ou explosões?// Tire-se o homem do abismo/ de seu bélico tropismo. // Mude-se o ódio na fala / que, envergonhada, se cala. // Que o crime não aconteça/ e a causa desapareça. // Que a mão não pegue na arma. / Não passe a ira do alarma. // Não se plante sofrimento / onde, do amor, não é o momento. // Cantem os pássaros na alma / de quem sua fúria acalma. // Brotem fontes na erma terra / em que a solidão se encerra. // Que o choro e o ranger de dentes / sejam, da paz, as sementes. // E a noite envolva em seu manto, / do amor, o gesto e o canto.//"


Em Reynaldo Valinho Alvarez, a palavra é uma flecha solta no ar, mas é também cântico. Daí, a boa e falsa discordância de seus versos que sabem estar na reação à sombra a maior força de um grito. Pois seus versos também gritam, naquele necessário grito de chamar a atenção de quem o lê porque o poeta sabe que o fim também é o verbo. Através dele viramos gente e somos capazes de entender que não podemos prescindir de usar e aceitar a palavra como arma e com cântico.


Daí também, a importância de um bardo como Reynaldo Valinho Alvarez que, posto na encruzilhada em que se encontra sempre a literatura de um País, consegue inovar-lhe os caminhos.


"Corta a noite um gemido" é um livro raro no Brasil de hoje. Seus versos não repetem caminhos de ontem. Não buscam a pura originalidade, sendo, porém, extremamente pessoais.


Preservam o modo que, ao longo de seus livros anteriores, se tornou seu. Suas imagens são de extrema pessoalidade. Como nos quatro primeiros versos de "O menino sem braços": "Voam pássaros maus que põem ovos de fogo,/ Voam também casais abraçados nos leitos./ Inútil reclamar. Esse é o humano jogo/ e assim fazem-se heróis, ciosos de seus feitos."


"Corta a noite um gemido" é uma edição da Myrrha. Organização, produção dos textos e revisão de Maria José de Sant'Anna Alvarez, ilustração da capa, projeto gráfico e diagramação de Hortênsia Maria Pecegueiro do Amaral.


Apresentação de Alexei Bueno.


Tribuna da Imprensa (RJ) 11/9/2007