Estamos nos tempos em que muito recordamos o filho Marcantonio. Carmo e eu vemos o filme a passar na lembrança. São os tempos do aniversário do seu nascimento. Tempos de. ir ao poço da saudade, exposta a ferida viva que não sara nunca. Como indaga Manuel Bandeira: É saudade ou espanto?
Procuramos ver tudo com aqueles olhos dele, olhos de inquirição, olhos que não se satisfaziam a buscar sempre o mais ver.
Marcantonio não tinha olhos nem zangados, nem alegres. Tinha olhos de busca. É indissociável dele a personalidade do descobridor. Por isso, ainda hoje, artistas responsáveis, galeristas, críticos de arte, colecionadores sentem falta dos seus olhares de revelação.
Sua marca foi o revelar, o entender mais agudamente, o chegar primeiro.
Lembro sempre a advertência de Ingeborg Bachmann: "Mas, sobre o pó, a canção do futuro soará para além de nós".
Freguês da esperança, Marcantonio Via longe e Via muito com seus olhos esverdeados.
Gosto de contar a narrativa que fez poeta uruguaio da chegada da noite no Rio de Janeiro, vista do alto da montanha. Encantou-se com as luzes que começavam a acender nas áreas de beira-mar e iam subindo, subindo morro acima entre árvores, pedras e favelas. Achou que eram insuficientes os seus olhos. Ao redor havia crianças. Chamou-as e pediu: "Me ajudem a ver essa maravilha. Só com os meus olhos não dou conta".
A mãe de Marcantonio, toda vez que se posta diante de uma obra de arte verdadeira, diz para mim: "Marcantonio está me ajudando a ver". E continua: "Só com os meus olhos não dou conta".
Walter Benjamin ensina que o vivido é finito, o lembrado é infinito. Lembramos, nós os pais e os irmãos, do seu olhar infinito. E roemos saudade. Ele deve estar sempre mirando auroras, a escutar a música infinita do silêncio.
Num dia desse julho agoniado, José Sarney, abalou-se com o horror de Congonhas e escreveu artigo estupendo na Folha de São Paulo. Começava assim: "É difícil lidar com a dor. Por isso o Criador nos fez com a incapacidade de memorizá-la de novo. Fica apenas a lembrança triste de uma dor passada. Pior ainda ter muitas dores. Dores da tragédia, dores do coração de mães, mulheres, filhos, parentes e amigos. São dores da' alma. Santo Agostinho dizia que a morte provava a existência da alma. Ao olhar um corpo morto perguntou: 'Onde está a sua alma?' Concluiu que saíra e, portanto, existia".
Sentimos muitas dores, dores da alma, dores da saudade - para só falar nos que vieram depois de nós - da neta Vytória, do filho Marcantonio. A alma deles junto de nós nos desafia a ver.
Telefonei para José Sarney e lhe disse sobre o artigo apenas o seguinte: Para mim e Carmo é demais. Ele entendeu na hora.
Jornal do Commercio (RJ) 30/8/2007