Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > O discurso mais curto da história

O discurso mais curto da história

 

Com voz esganiçada e trêmula, pronunciou: "Tá tudo muito confuso. Temo que não dê certo!"


ERA NO tempo das diligências, ou mais distante ainda, quando nem diligências havia. Não me refiro ao clássico de John Ford, "Stagecoach", mas a outro tipo de tempo e diligências.


Aí pelos finais dos anos 50, as cultas gentes se reuniam no Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), e, mediante módica contribuição mensal, podia-se participar das tentativas de entender o Brasil e procurar salvá-lo.


Eu não pertencia aos quadros redentores do Iseb. Era um alienado, um vendido aos lacaios do imperialismo, um burguês decadente e corrupto.


Não entendo por que, depois do 1º de abril de 1964, fui intimado a prestar esclarecimentos a respeito do funcionamento do Iseb. O coronel Gérson de Pina, que me interrogou durante cinco horas, achou que eu escondia o jogo.


Não sei em que deu o chama- do IPM do Iseb. Nem sei exata- mente no que deu o próprio Iseb. Teoricamente, o instituto nasceu com a finalidade de dar uma base conceitual, filosófica e pragmática ao desenvolvimento lançado na marra pelo presidente Juscelino Kubitschek.


Encerrado o governo JK, o Iseb teve tempo, enfim, para arrumar conceitos, idéias, estratégias e táticas, mas aí vieram as crises da renúncia de Jânio Quadros, o breve período parlamentarista, o governo de Jango, nova crise e o movimento de 64, que acabou com a alacridade do pessoal que já se preparava para distribuir terras entre lavradores e assumir o controle dos bancos. A turma do outro lado botou em campo uma ideologia que dizem ter nascido na Praia Vermelha.


A Sorbonne militar foi mais eficiente do que a Sorbonne civil das ruas das Palmeiras. Sabemos no que deu.


Lembro uma das vezes em que fui ao Iseb, levado por um amigo e por uma dor de cotovelo que me botou no meio da noite sem ter aonde ir e para que ir.


O presidente da mesa disse que a reunião era para discutir uma nova estratégia -e logo foi interrompido por um sociólogo: não, não se tratava de uma estratégia, mas de uma tática. O aparte do sociólogo, mal se entrava em campo, tumultuou o resto da partida e da noite.


Começaram discussões paralelas sobre tática e estratégia, cinco horas depois de iniciados os trabalhos, os debates prosseguiam, colocaram-se uma infinidade de posições intermediárias que não chegavam a ser estratégicas nem táticas. Falou-se até no bispo Sardinha, que foi comido pelos nossos índios.


Quando os primeiros raios do sol passaram pelas palmeiras que rodeavam a sede, entrou em cena um militar que trazia noticias frescas da Amazônia, onde as multinacionais haviam instalado um acampamento maior do que Sergipe e Bahia juntas. Foi então que um velhinho se levantou, ergueu o dedo trêmulo e com voz trêmula pediu a palavra.


Houve estupor. O velhinho freqüentava o Iseb desde a fundação, nunca falava nada, pagava as contribuições, assinava os manifestos, suportava as vigílias cívicas espartanamente, era dos primeiros a chegar, dos últimos a sair. E nunca fora apanhado cochilando, ouvia todos os oradores, batia palmas nas horas devidas. Que diabo teria ele a acrescentar ao debate, que luz traria às mentes que ali se esbofavam no cívico dever de salvar a nação?


De qualquer forma, houve raiva quando o velhinho pediu a palavra. Voz esganiçada e trêmula, o velhinho pronunciou o discurso mais curto daquela época:


-Tá tudo muito confuso. Temo que não dê certo!


Passaram-se anos. Acredito que esse velhinho, pelo natural rodar da carruagem, já deve ter tirado suas conclusões na eternidade -se lá no assento etéreo onde subiu memória desta vida se consente.


O que veio depois daquelas reuniões cívicas não foi mole. Volta e meia, eu me encontrava com sobreviventes daquela sessão isebiana e lembrávamos o velhinho, dando-lhe póstuma e inútil razão.


O que antes se passava nos limites de um casarão na rua das Palmeiras, agora tem platéia maior que atinge Congresso, sindicatos, a turma do "Cansei", OAB, CNBB, Ibama e grande mídia.


De minha parte, estou esperando que surja outro velhinho (pode até ser o mesmo) para constatar que "tá tudo muito confuso, temo que não dê certo!".


Folha de S. Paulo (SP) 31/8/2007