Tive de enfrentar um certo trauma de infância, para conseguir usar o título acima. Sou do tempo em que essa palavra era chula mesmo e, como diz o Houaiss, tabuísmo. Menino que a pronunciasse na frente de senhoras estava arriscado a ter a boca lavada com sabão. Agora se escreve e se publica em jornal praticamente qualquer coisa e ela já faz parte do vocabulário cotidiano. Assim mesmo, sou obrigado a evitar os olhares de reprovação dos fantasmas de meu pai e de meu avô, ambos eméritos xingadores de jornal, mas xingadores finos, que raspavam palavrões polissilábicos em textos barrocos e nunca escreveriam nada com o título que escolhi hoje.
Mas, honestamente, que outra palavra pode ser usada para a sensação que nos acomete, diante do que vem sucedendo no Brasil? Só esculhambação mesmo. Desgoverno também, mas desgoverno é pouco, esculhambação é mais plurívoca, mais conotativa, mais colorida. Acho que basta qualquer um ligar a tevê para ver o noticiário ou abrir o jornal e a sensação de esculhambação é avassaladora, nos engolfa por todos os lados.
O pavoroso desastre de Congonhas: cada dia uma coisa, ninguém sabe de nada. O governo, em vez de se interessar genuinamente pela tragédia, resolve se concentrar na preservação da própria imagem. Aí a gente vai ver as notícias e os responsáveis por órgãos envolvidos com o tráfego aéreo estão sendo condecorados por serviços prestados à aviação. Quer dizer, uma pessoa desesperada com a perda de parentes ou amigos pensa que pelo menos o governo deve tomar alguma providência, ainda que tardia, e o que vê é a condecoração. Como puderam ter a insensibilidade de fazer isso? A não ser que o "relaxe e goze" tenha sido mesmo uma palavra de ordem, ou a atitude geral dos governantes para conosco seja mesmo resumível nesse deboche.
A esculhambação, nas companhias que desprezam o viajante e no governo que as fiscaliza, já tinha brilhado assim que se teve notícia do desastre. Pois o presidente da República, que por acaso se encontrava no país, não sumiu por três dias, num gesto de pusilanimidade, grossura e falta de grandeza para o cargo? Enquanto desastres bem menores, sob chefes de Estado e governo conscientes de suas obrigações morais e políticas, levam aos atingidos as visitas pessoais de reis, rainhas, primeiros-ministros, ministros, primeiras-damas e assim por diante, aqui todo mundo, a começar pelo presidente, se escondeu.
Não há nada que justifique isso. Segundo tenho ouvido comentar, o principal fator foi o medo de vaias. Nosso líder, nosso guia, o presidente de todos os brasileiros, não cumpre seu dever moral de estar presente e à frente nos momentos difíceis vividos pelo país porque tem medo de vaias. Não pode ser, não acredito - mas que outra razão ele teria? E já li nos jornais que, na semana que passou, entre ir a lugares onde poderia receber as ingratas vaias e a outros onde o Bolsa-Família o escuda, dá exclusividade a esses últimos.
Que coisa, os lugares onde ele é vaiado não devem pertencer à realidade. A realidade é outra, é a do aplauso. Agora me ocorre que, no vasto e doce jardim de mordomias trazido pelo poder, está, tradicionalmente e em importante posição, a possibilidade de, se a realidade for desagradável ao governante, trocar-se a realidade. Dizem que, quando Catarina da Rússia viajava pelo seu vastíssimo império, auxiliares construíam cidades prósperas - cenográficas, por assim dizer - para ela ver em sua passagem e dessa forma não ter idéia da desagradável miséria de muitas daquelas regiões. Semelhantemente, o presidente escolhe a realidade nacional a que prefere ser exposto. Junto a este, o argumento de que esse negócio de crise aérea só interessa a barão que viaja de avião e não ao povo mesmo, alegação que já ouvi vociferada por admiradores do governo. E pronto, está tudo certo, Deus tenha piedade de nós.
Ouvimos as mais desvairadas versões sobre o que aconteceu e as medidas que foram ou serão tomadas. A única coisa de que se tem certeza, segundo depreendo do que venho lendo, é que as passagens aumentarão de preço. É uma mudança, não se pode negar. Contam-nos que os órgãos criados para administrar a aviação civil são frondosos cabides de empregos, onde pouca gente sabe falar mais sobre um avião do que "ele tem asas", assim como há cabides de empregos em toda parte, todo mundo "colocado" e ninguém sabendo fazer nada. A capacitação é requisito suntuário ou inexistente nesta administração.
Administração é modo de dizer, pois, a começar pelo presidente, ninguém no governo sabe administrar. Administrar é viajar, discursar e ser ovacionado, parece pensar o presidente de um governo que vive mais de reagir do que de agir e que, tudo bem avaliado, não fez foi nada até agora, além do que estamos vendo aí. E ninguém administra nada, ninguém é competente em nada daquilo a que está ligado, ninguém sabe nada, a impressão é de um viveiro de baratas tontas semitartamudas ou arrogantes. Estamos testemunhando o apagão aéreo - tudo bem, coisa da repulsiva classe média, não interessa verdadeiramente ao povo que aplaude. Mas será que ficaremos por aí?
Não custa lembrar um dos poetas mais populares do Brasil, Augusto dos Anjos, e um de seus versos mais conhecidos: "A mão que afaga é a mesma que apedreja". Porque, pelo arrastar da carruagem e pela aceleração quelônia do PAC, pode-se ter uma razoável expectativa do apagão rodoviário, do apagão portuário, do apagão da saúde, do apagão da educação etc. Está tudo acontecendo, só não vê quem não olha. E, como apoteose, o apagão literal, um apagão de energia lá para 2010, ou até antes. É, talvez venha a ser difícil, em futuro relativamente próximo, achar lugar para se esconder, muito menos das vaias. Se bem que a escuridão, inclusive a do apagão mental, ajude bastante.
O Estado de S. Paulo (SP) 29/7/2007