Eu restei. Mutilaram-me, arrancaram-me pedaços, ninguém ouviu meus uivos
DE REPENTE os homens aproveitaram as trevas da noite e começaram a demolir os meus barracos.
Não me importei, nem sequer me enchi de pasmo, apesar de meu nome ser Pasmado. Tempos atrás, outros homens vieram também, cavaram-me o intestino imenso para que não atrapalhasse o tráfego deles. Dei-lhes pedaços de minha carne, mas isso não lhes bastou. Subiram agora e, agredidos os barracos, puseram-me fogo.
Sei, o fogo destrói e purifica. Poderiam até me salgar -que também era método convincente para cobrir a terra de estéril ignomínia. Os sítios malditos da história e da lenda foram queimados e salgados, para que nada nascesse deles. Pouparam-me o sal, mas não por misericórdia.
É possível que, agora, os técnicos estejam imaginando o que deverão plantar ou construir em mim. Talvez, sirva apenas para a decoração, e virão essas plantas ornamentais que tomam penicilina e vitaminas.
Tampouco importa. Sou um morro pobre e tive a desgraça de vir me plantar numa paisagem rica. Só servi para atrapalhar o trânsito mas nem sequer fui digno de destruição. Outros morros, que apenas atravancavam a vida deles, foram inteiros dormir na baía, cobertos de glória.
Eu restei. Mutilaram-me, arrancaram-me pedaços, ninguém ouviu meus uivos, ardi uma noite inteira, minhas chamas subiram ao céu e encheram o ar de fumaça e espanto, e eles continuaram a passar pelo meu ventre iluminado, insensíveis, nos seus automóveis faiscantes.
A gente que me habitava era miserável -bem sei. Quando me abriram o enorme intestino oco, o pretexto deles era o urbanismo. Agora não foi urbanismo. Houve até quem quisesse urbanisticamente me aproveitar, feio como sou, e com minha gente feia, para decorar oficialmente a paisagem. Pintariam meus barracos, e eu, de favela pobre, viraria um Mondrian panorâmico, imenso em minhas cores retificadas.
Não foi urbanismo, mas foi assistência social. Ignoro o sentido exato dessas palavras, mas isso não me socorre nem mitiga: sofro do mesmo jeito. Bem que podiam me deixar em paz, no pesado silêncio de minha silhueta triste, mas sei lá o que os técnicos perpetram em seus gabinetes refrigerados. Se eles me pedissem a opinião, eu lhes diria que gostaria de ficar abandonado. Sobre minha pele crestada logo nasceriam pés de milho modestos e fecundos.
Se me ajudassem um pouco, até coisa melhor e mais útil eu poderia lhes dar, sem violentar meus músculos, e com abundância de minha seiva. A terra -disse Vaz um dia- é dadivosa, em se plantando.
Mas não me consultaram. A rigor, nada querem de mim. Fui um estorvo inicial: fenderam-me as carnes e pavimentaram meu ventre para o conforto deles.
Meus barracos, minha gente miserável também foi um estorvo. Vez ou outra, alguns deles olhavam aqui para cima e pensava em coisas incômodas. Não atrapalhava o trânsito, mas as consciências.
Pois até essa gente arrancaram de mim. Agora, calvo como um sentenciado medieval, eu deveria merecer a esmola da morte e a honra do esquecimento.
Não é isso o que exigirão de mim. Do cadáver mutilado, quase incinerado, exigem mais ainda. Querem que lhes enfeite a paisagem, que lhes dê distração e motivo para cartões postais. Adornarão o meu cadáver tantas vezes profanado e -como o meu nome é triste- é possível que até o nome me mudem.
Nada posso fazer por mim. Cada morro, em certo sentido, tem o destino que merece. No Pão de Açúcar botaram aquele bondinho onde gente viaja, vê e diz as mesmas coisas. No Corcovado, colocaram aquele homem de braços abertos. Em outros, botaram até anúncio de dentifrícios e refrigerantes.
Resisti como pude. Hoje, ofereço ao sol e à cidade a minha nudez silenciosa e agreste. Submisso ao meu peso e ao meu destino, espero resignado e fatal. Ninguém ouvirá meu grito de impotência e medo. Ninguém saberá que a montanha estuprada prepara a sua vingança. E quando, um dia, sepultar em meus escombros os inocentes e as criancinhas, ninguém ouvirá a gargalhada das pedras assassinas que farão justiça por mim, pelos meus espantos, pelas minhas chagas.
Folha de S. Paulo (SP) 13/7/2007