Espero que este domingo esteja um dia meteorologicamente irretocável, um sol quase de verão amenizado por ares outonais. Sempre espero mais ou menos isso, aliás, mas é freqüente que não me dê bem na previsão e o domingo só seja propício para os espíritos melancólicos, que sentem estranho prazer em contemplar sozinhos a paisagem penumbrosa e úmida, a chuva escorrendo pela vidraça e ocultando o horizonte, talvez uns versos de Lupicínio Rodrigues insistindo em ser cantados no fundo da mente, lembranças enevoadas e frias enxameando em torno da cabeça. Porque os melancólicos também são filhos de Deus, dias assim não deixam de ter seu valor e serventia, sublinhando a sutil sabedoria da frase de meu amigo Benebê, que às vezes a repete em tertúlias no bar de Espanha, em Itaparica. "O mundo é perfêtcho", diz ele, em seu impecável sotaque do Recôncavo, e ninguém ousa contestá-lo, inclusive eu, naturalmente.
Sim, o mundo é perfeito, ou tem sido até começar a acabar (vai ver que Benebê vê nisso outra mostra de sua perfeição, porque ele vai acabar para nós, mas não para ele mesmo ou para as baratas), mas peço vênia aos que hoje estão inclinados ao quebranto, ao banzo, a pensamentos macambúzios e diversos outros estados de espírito em que às vezes misteriosamente nos comprazemos, para preferir o sol e a claridade brilhante que para a maioria é a melhor forma de a manhã de domingo apresentar-se. Um belo domingo de sol com tudo a que tem direito e por que adiar a temível decisão, que precisará ser tomada mais cedo ou mais tarde?
Sabem os abnegados que me lêem com constância que a malha médica me pegou firme outra vez, desta vez com pinta de quem quer botar tudo no papel passado, ou seja, a malha médica quer casar comigo, ou entrar numa coabitação mais ou menos intensa. Há uns exames programados que ainda não fiz e que, só em olhar para as requisições, me congelam o sangue. Um aqui, deve ser coisa boba, leva cerca de quatro horas. Não sei bem o que me quer dizer minha imbatível equipe de esculápios, mas temo que não façam uma idéia lá muito favorável de minhas condições físicas ou mentais, ou ambas as coisas. Sofro pesadelos em que imagino todos os onze (ainda não contei, mas acho que já dá um time de futebol, com sobras para um banquinho de reservas) fazendo o comentário que eles fazem entre si, quando deparam um estado de saúde no mínimo estapafúrdio: "É um belo caso", dizem eles, entre risinhos sádicos. "Belo caso, belo caso!"
Nenhum deles ainda me disse, mas eu sei que sou um belo caso, daí os exames. E daí a inevitável sentença: calçadão. Não serve esteira, porque eu enrolo, não serve bicicleta estacionária porque eu me recuso a livrar-me da minha, que deverá fossilizar-se em breve e os arqueólogos não me perdoariam se a jogasse no lixo. E porque convencionou-se, ignoro eu a razão, que andar no calçadão é fantástico e nada pode ser comparado ao calçadão e quem não gosta do calçadão é porque não se costumou e quem não se acostuma é porque deve ter alguma doença rara que antigamente só dava em anões romenos e que, depois de andar no calçadão, a sensação de euforia e bem-estar é indescritível.
Claro, não espalhem, mas eu sou um anormal. Outro dia, em palestra com o lépido calçadonista Zuenir Ventura, ele dissertou doutamente sobre endorfinas e ficou pasmo quando eu disse que ignorava os benefícios trazidos por elas, pois que, depois de andar no calçadão, só me vinha uma sensação de alívio e cumprimento de penas no Purgatório, acompanhados do desejo intenso de que uma ressaca cobrisse inteiramente o calçadão no dia seguinte. Ele ficou penalizadíssimo e chamou alguns amigos circunstantes para me mostrar, como quem mostra um ornitorrinco num zoológico. Caso raríssimo de - como diria? - anendorfinia. Fiquei com tanta vergonha de minha doença que perguntei se não dava para injetar endorfinas na veia e ele prometeu verificar para mim.
A malha médica, entretanto, não se contenta com isso, exige o calçadão. Usei todos os argumentos possíveis, notadamente, o que sei que é politicamente muito incorreto, pois abomino o calçadão, embora com todo o respeito pelos seus cultores. Mas ninguém parece a favor da liberdade religiosa e assim sou obrigado, quer queira quer não, a andar no calçadão. Dois ou três membros da malha médica ainda sugeriram que eu me matriculasse numa academia, mas também já tenho essa experiência. Na minha idade, dá muito trabalho adaptar-se a uma subcultura de elevada complexidade como a das academias, onde todo mundo me acha chato e eu acho todo mundo chato.
Ainda não me dei por vencido intimamente, mas já capitulei. Desejei um domingo de sol porque planejava começar hoje, sério mesmo. Comprei um calção novo, sapatos metidos a besta e obviamente superfaturados conforme os costumes nacionais, até uma camisa especial - não sei por quê, mas o balconista disse que era especial e eu acredito em tudo o que me dizem. Achei o chapéu e os óculos escuros, está tudo pronto. Mas agora senti que não será hoje. Sempre em perfeita sintonia com a realidade nacional, vou começar de uma forma que, pelo menos simbolicamente, represente algo importante para mim e para o Brasil. Já escolhi a data: no dia em que o espetáculo do crescimento começar, podem ter certeza de que estarei marchando briosamente pelo calçadão e vocês vão testemunhar o desempenho do maior caminhador deste país, desde que a coluna Prestes percorreu toda a muralha da China. Esperem sentadinhos, claro, Roma não foi feita num dia.
O Globo (RJ) 17/6/2007