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Opinião: Do cinismo ao exorcismo cívico

 

Chegamos ao meio do ano com o avanço mais fundo - e talvez irrevogável - do que seja, à custa dos escândalos, o aprofundamento da nossa democracia. Viraram-se as páginas da contumácia com a corrupção, com direito ao cinismo cívico, que permite a exaustão das manchetes, que não se lêem, não se ouvem, tanto a falcatrua passe, do anedótico, a um novo grotesco. Não se repetiu ainda o flagrante dos dólares na cueca dos meliantes. O novo espanto é bom e vem de outro lado, com a polícia a chegar aos gabinetes e à cornucópia das contas da cosanostra, e à família presidencial sem que, do Planalto, algum freio se levante. A reação presidencial à "falta de cabeça" de Vavá deu nova enxurrada de apoio a Lula na opinião pública, que sabe que agora não é só pobre que anda de camburão.


O flagelo democraticíssimo do grampo desimpediu o caminho para as algemas até ao açodamento da polícia, em sua nova desenvoltura. As celas de cadeia acolhem presos nas tarrafas da lei, acusados da velha corrupção do dinheiro vivo, e pelo delito, nas ditas "relações públicas", de sedução dos depósitos bancários, do iate perverso ou do pedido ao bom coração de Vavá. Afinal, o que é, para um potentado parlamentar, forçar verbas para seu Estado, ou destravá-lo para as pagas - a que mimos, ou meros tapas nas costas, nas alavancas do orçamento da República? A sucessão dos últimos algemados - paletó de veludo, ou não, sobre os punhos - fica como uma alforria para o imaginário popular da justiça, tão diferente da deusa cega, e da sua frágil e viciada balança.


É também este meio do ano, o da condenação do procurador José Francisco, por abuso de poder político no exercício do Ministério Público, criado para, de vez, livrar a sociedade do sufoco da máquina de governo, e do conformismo secular com a dominação dos sistemas. A sentença é exemplar, para pôr a salvo o mais ambicioso aperfeiçoamento das nossas instituições. O Ministério Público vence, por aí, a adolescência na descoberta de seu poder, no raspar de sabres da prova de sua autonomia e só se espera o encontro do limite à tentação do voyeurismo pelas vestais oficiais do nosso Estado de Direito.


Na boa crise destes dias deparamos também transações criadoras, entre cinismo e civismo. O caso Renan Calheiros incorporou aos nossos dias a noção da cidadania romana, do sacrifício do espaço privado, como reparação para o atentado público. Deparamos, em toda sua nova coreografia, a exposição traumática, corum populo, da intimidade familiar, em bem da probidade última do varão do Senado. Instituiu-se o exorcismo cívico do potentado, no despir-se da vida particular, em catarse que se pode transformar num precedente para o nível de transparência total a se exigir dos deuses da República.


Antecipamo-nos ao que, canhestramente, tentou a Presidência Clinton, no tardar das confissões análogas à opinião pública, levando finalmente ao castigo dos democratas, nas eleições que trouxeram Bush ao poder. Vavás, Josés Franciscos e a gestante se transformaram em protagonistas de um Brasil que sabe hoje, pela ação de sua polícia e de sua democracia subitamente amadurecida, que não volta à tropicália dos mensalões, do orçamento entre amigos ou, sobretudo, do "sabe com quem está falando?".


Jornal do Brasil (RJ) 13/6/2007