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Bush, nem doutrina, nem esmola

 

Não estamos mais nos tempos da visita de Reagan, quando, em Brasília, pensou estar na Bolívia e não no Brasil. Décadas depois, o republicano ora na Presidência troca a distância coriácea por um claro recado quanto à visão da América Latina pelo Salão Oval hegemônico. Na abertura do século XXI estamos a léguas da venerável doutrina Monroe, que ainda negava uma convergência histórica natural do Continente, como esse Novo Mundo, frente ao poder europeu, ainda impressentida aos contrastes abissais que apresentaria a sua prosperidade. A visão de Washington se despedaça hoje entre os impasses da Alca, que só logra integrar o Continente ao norte do Canal do Panamá, os múltiplos ziguezagues do grosso da América Latina entre o Mercosul e a América Andina, a sideração chavista, e o peso do Brasil para além de todo aliancismo regional, com o seu protagonismo de nação-continente.


Bush começou a falar espanhol ao aterrissar em Montevidéu. Deu-se conta da inviabilidade de qualquer confrontação explícita com Caracas, tanto quanto da dificuldade de sair de uma agenda aguadíssima de tópicos, como comprovara no Brasil. O republicanismo soma hoje a agenda da hegemonia, transformada em cruzada pelo Ocidente, o apoio mais radical ao protecionismo tributário do país. Desmonta as esperanças de nosso etanol, quanto ao que venha a ser qualquer efetiva abertura às novas rodadas Doha ou as melhorias do comércio exterior do país pelas novas franquias à globalização. E o que fica de tônica como conquistas são as voltas ao bilateralismo que hoje não escapa mais, por exemplo, à retórica ainda mercosulina do Uruguai.


Não há apenas que confrontar os valores quase caricatos dos auxílios externos trazidos ao andor republicano. Entre tantas outras comparações basta a de que ficam abaixo do dinheiro anual aportado ao Egito. E mais de metade deste pobre bilhão e duzentos vincula-se à campanha antiterrorista e às garantias de apoio logístico oferecida ao governo Uribe. O cuidado, por outro lado, com o impacto da imagem presidencial levou até a imagem de Bush carregando caixote de alface num armazém da Guatemala. E à novidade quase hilariante do populismo bushiano somou-se ao discurso da piedade e do confrangimento com a pobreza continental. Mas a lágrima é sempre politicamente correta enquanto não se aparta do novo Muro de Berlim construído na fronteira mexicana, ou a prisão sumária para os imigrantes sem emprego.


Até onde a política de coexistência internacional deve, ou não, trocar a imagem dos países pelas dos seus governantes? A americana permaneceu até a última década, vinculada, entre nós, ao sinete de Kennedy. Tal como a francesa, não se liberta de De Gaulle, ainda para bem da presença instintiva em nosso inconsciente coletivo de um condutor de futuro desses países. Trabalhada no seu recado, muito mais do que diga, ou proponha, o Bush do blusão proletário na Guatemala não erradica a figura do Salão Oval. O retrato das hegemonias pesa mais que a alternativa - passada ao luxo do mero futurível - de Hillarys, Gores ou Obamas. O "rictus" está aí e para ficar - a "civilização do medo".


Jornal do Commercio (RJ) 23/3/2007