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Niemeyer: a estética da fluidez

 

“O elemento básico é aquilo que glorificou a mulata brasileira: a curva. E a curva faz a festa. Não temos aqui aquelas retas rígidas, inflexíveis. O desenho de Niemeyer brinca com nosso olhar, atiça nossa imaginação. É uma arquitetura lúdica, capaz de neutralizar qualquer tentação totalitária”


No último dia 8 de março, a Academia Brasileira de Letras homenageou uma figura lendária em nosso país: Oscar Niemeyer, que, em 2007, completa 100 anos. É aquilo que a gente pode chamar de idade provecta, e deixou suas marcas em Niemeyer, mas não comprometeu sua extraordinária vitalidade: ali estava ele, miúdo, encolhido em sua cadeira de rodas, mas animado, falando de seus planos para o futuro. E, claro, protestando contra a presença de Bush no Brasil: afinal, trata-se de um comunista histórico, que nunca negou suas idéias. A fidelidade à causa e, mais importante, a paixão pela arquitetura provavelmente explicam sua longevidade. Mais do que isso, a arquitetura projetou-o mundialmente. A obra de Niemeyer é conhecida e admirada nos quatro cantos do mundo.


Mas não é uma unanimidade. Nesse sentido, minha geração, que venerava Niemeyer, pode dar testemunho da transformação que se operou em torno de sua imagem. De início, ele era considerado um revolucionário, tanto por seus projetos como por suas idéias políticas. Mas o comunismo, melhor dizendo, o estalinismo, não resistiu a seus próprios erros (e crimes) e acabou ruindo fragorosamente, sepultando em suas ruínas os ideais de desconsolados militantes. Muitos daqueles que viam no regime a panacéia para os males da humanidade, agora voltavam-se contra a ideologia comunista e também contra suas manifestações culturais. Por exemplo: o realismo socialista, que se expressou em obras literárias medíocres, propagandísticas e em artes plásticas convencionais e igualmente medíocres. Aí sobrou para a arquitetura, aliás, não sem razão. Como Hitler, Stalin tinha as próprias idéias acerca do assunto. Os prédios estalinistas (e Berlim Oriental disso dava exemplo) eram enormes, maciços, quadrados. Simbolizavam o poder absoluto, o poder ao qual o povo tinha de se curvar.


Não tardou muito para que essa crítica fosse estendida também à obra de Niemeyer, sobretudo por causa de Brasília. A expressão “arquitetura totalitária” começou a ser freqüentemente mencionada. Disso dão exemplo The modernist city: an anthropological critique of Brasilia, do norte-americano James Holston, e as análises do planejador urbano e teórico da arquitetura Léon Krier. Este último vê traços comuns entre o modernismo arquitetônico e o comunismo, ambos impondo-se às pessoas sem levar em conta as opções pessoais destas.


No caso de Niemeyer, isso é uma injustiça, para dizer o mínimo. A riqueza de sua obra simplesmente elimina a possibilidade de rótulos simplistas. É, em primeiro lugar, uma obra artística de caráter essencialmente brasileiro; Niemeyer faz o que um estudioso de sua obra denominou de “a estética da fluidez”. O elemento básico dessa estética é aquilo que glorificou a mulata brasileira: a curva. E a curva faz a festa. Não temos aqui aquelas retas rígidas, inflexíveis. O desenho de Niemeyer brinca com o nosso olhar, atiça nossa imaginação. É uma arquitetura lúdica, capaz de neutralizar qualquer tentação totalitária.


Entre parênteses, certamente essa flexibilidade ajudou Oscar Niemeyer a chegar ao centenário. A vida não gosta da rigidez. Não gosta da rigidez nas artérias, não gosta da rigidez nas articulações, não gosta da rigidez na imaginação. A vida é para ser levada seriamente, mas a vida não dispensa sorrisos, como não dispensa imaginação. Aos 100 anos, Oscar Niemeyer continua nos dando lições de sabedoria. Por isso, ele é um mestre.


Correio Braziliense (DF) 16/3/2007