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Biografia de um sucesso

 

Sentiu cheiros dos quais se esquecera e que eram mais fortes do que o mofo acumulado


NO DIA em que completou cinco anos, berrou 12 horas seguidas, querendo a maçaneta da porta do quarto da mãe -velha maçaneta de cristal, quando a luz batia em cima ficava cheia de cores, era o fascínio, o principal brinquedo de sua primeira infância.


Evidente que ninguém lhe deu atenção, ou melhor, deram-lhe toda a atenção, menos a maçaneta de cristal que parecia iluminada por um arco-íris.


Ganhou muitos brinquedos, inclusive um cavalinho de pau, um velocípede e um quadro-negro com giz e apagador.


No dia em que fez dez anos, pediu e ganhou uma bicicleta, mas não deu muita importância ao presente. Preferia andar na bicicleta de seu irmão mais velho e, meses depois, criou um problema na rua quando trocou com o garoto vizinho sua bicicleta nova por uma coleção de bolas de gude e um pião.


Os pais de ambos os garotos entraram na jogada, desfizeram a troca, mesmo assim a vergonha foi mútua: eram homens sérios, de respeito, comerciantes bem-sucedidos, sabiam que não se desfaz um negócio firmado livremente pelas partes, enfim, foi um problema, dos muitos que ele criou em sua infância.


Aos 15 anos, não ganhou nada: estava no internato e, como seu aniversário coincidia vagamente com a Semana Santa, ganhou antecipadamente um ovo de Páscoa, que ele jogou fora, num matinho que havia lá para os fundos do recreio.


Mesmo assim, lá pelo início da noite, ele foi para um canto e chorou de raiva: um dia se vingaria de tudo e aí o mundo tremeria a seus pés.


Ao fazer 20 anos ganhou um enxoval de noivo: roupas de cama, móveis, casa e um emprego na companhia do pai, pois a noiva era pobre e a família dele precisava torná-lo um executivo às pressas, pois o irmão mais velho dera uma de louco, trocando as pompas deste mundo por uns trapos coloridos, uma cabeça raspada e uns hinos esquisitos, tornando-se um hare krishna antecipado da onda que viria mais tarde, nos anos 70.


Pois em meados dos anos 50 o irmão abandonou a família e foi para o Tibete, viver em paz com seu karma ou entidade equivalente.


Para compensar o mau exemplo do irmão mais velho, aos 25 anos ganhou o título de diretor vice-presidente da empresa de seu pai e uma filha. Ganhou também um cadillac rabo-de-peixe, importado; na época não havia similares nacionais.Aos 30 anos, ganhou outro filho e o título de "homem de visão" do ano. Aos 35 anos, não ganhou nada pois estava numa reunião internacional, em Genebra, debatendo com empresários do mundo ocidental as causas do recesso industrial provocado pela queda da libra e pela maxidesvalorização do marco alemão.Mesmo assim, no dia seguinte -o atraso foi atribuído aos péssimos serviços dos postalistas suíços- recebeu telegramas da família e dos puxa-sacos da empresa da qual já era o segundo em importância.


As 40 anos, ganhou a presidência de todas as empresas do grupo da família e um filho bastardo (ele tivera um caso com uma funcionária de terceiro escalão), e o governo de Minas Gerais concedeu-lhe a Medalha da Inconfidência.


Aos 45, quase não ia ganhando nada, mas na última hora ganhou um jantar de surpresa, preparado por todos os puxa-sacos de suas empresas, os mesmos dos telegramas de cinco anos passados, acrescidos por novos de seus novos negócios.Aos 50 anos, recebeu uma urna de bronze com as cinzas de seu irmão mais velho que morrera no Tibete depois de uma greve de fome em nome da paz mundial.


Aos 55 anos, depois de complicada demanda familiar, ganhou a velha casa onde nascera e passara a infância e que estava abandonada.Na manhã seguinte ao dia em que recebeu a escritura definitiva da posse, foi sozinho para lá, abriu a porta principal, pisou em ratazanas mortas e espalhadas pelo assoalho. Sentiu cheiros dos quais se esquecera e que eram mais fortes do que o mofo acumulado pelo abandono e pelas ratazanas mortas.Não abriu uma janela. Foi direto ao quarto de seus pais; apodrecida em suas ferragens, a maçaneta de cristal foi fácil de ser retirada. Não havia sol, mas ele sabia que dentro dela havia um arco-íris iluminado e agora seu.


Folha de S. Paulo (SP) 9/3/2007