Que América Latina deparará Bush na viagem entre tantas paradas diferentes na visita ao continente, descartado de todas as prioridades no presente mandato republicano? A da Alca que hoje já capturou o México e boa parte da América Central, tal como o Chile? A do fantasma do Mercosul, rachado pelos novos bilateralismos que trazem à velha dependência, o Uruguai e o Paraguai? A do chavismo, tolerado em todos os seus impropérios, tanto o petróleo venezuelano ainda é imperativo da geopolítica americana diante das incertezas do Oriente Médio? Ou a do Brasil, cada vez mais definido pela nação-continente voltada para o seu próprio mercado interno e o alinhamento transatlântico, somado ao crescente desempenho do Grupo G-20?
O mundo destes dias, de após a última Davos, e do novo revisionismo dos foruns mundiais ameaçados de exaustão, marca este contraste em nossas lideranças do continente entre a fácil polarização de Hugo Chávez e a liderança brasileira cada vez mais consistente, também já para além de um retórico terceiro-mundismo.
Haveria a falar num desponte deste protagonismo internacional, em que o país de Lula assenta definitivamente a relação entre desenvolvimento e democracia, fora das reversões da América andina, de Correa e Morales, tentados pelas maracas de Caracas: marca agora, pelo PAC, os rumos nítidos de um planejamento, vencida a síndrome privatista dos acordos de Washington, e reafirmado o vigoroso papel do Estado no desenvolvimento através de iniciativas como a das PPPs; do minicrédito de massa, ou das políticas de acesso direto da marginalidade ao mercado e aos serviços sociais, independentemente do velho formulário liberal.
Os anos-chave agora de Lula coincidem com o ocaso político de Bush sem, entretanto, acenar a uma mudança básica da política hegemônica dos EUA. Mostra-nos a moderação dos democratas - senão a sua impossibilidade - de alterar a ocupação militar transatlântica, somando agora ao Iraque e ao Afeganistão a viabilidade de um novo Exército ocupando a Somália. A frenagem deste avanço pode exaurir os democratas na contenção da nova escalada possível no Irã e dentro do corolário duro das hegemonias de poder aliadas às econômicas, ou seja, do reforço da crença nas guerras instantâneas e preemptivas, para fechar o anel de defesa americana, de Bagdá a Cabul.
As prioridades hegemônicas podem permitir a Bush, no passeio pelo seu jardim continental, a agenda tópica, senão emoliente, do debate dos biocombustíveis, ou até, pela primeira vez, frente a uma plataforma violentamente anti-Kyoto, assumir a retórica ambientalista sobre a Amazônia, saco sem fundo para as litanias das dominações, mascaradas do zelo ecológico. Na verdade o Salão Oval depara hoje os vácuos deixados pela sua polarização geopolítica asiática. Empresta uma sobrevida a prazo ao chavismo, tal como depara a quarta via brasileira, que já descartou o antiamericanismo como o antichavismo, e as nostalgias do velho terceiro-mundismo. O comportamento de Lula frente a Morales foi todo o contrário, na ação da Petrobras, aos jogos fáceis da dominação, tal como vem de impedir o retorno do Uruguai ao bilateralismo, e agora na Guiana, barrar o protagonismo venezuelano como dono do Caribe.
A hegemonia camarada não permite, entretanto, apenas as agendas inócuas. Só na verdade os encontros pessoais dão a silhueta real do que se confronta, mais do que se diga, e fala a Bush um presidente reeleito, num vagalhão eleitoral da maior expressão, hoje, no Ocidente do voto da consciência dos destituídos. Se a hegemonia ainda hesita nos seus jogos feitos, o Brasil neste quadriênio aponta à brecha da diferença.
Jornal do Brasil (RJ) 7/3/2007