Para quem porventura alimentava a esperança de ver-se livre desta coluna, receio não ter boas notícias. Não só voltei, como estou em pleno gozo de minhas faculdades físicas e mentais, o que lá signifique isto em meu caso. Esclareço este último ponto porque assisti, não sem certo susto, a minha cara aparecendo na tevê, com a apresentadora anunciando que eu tinha tido um AVC, o que, aliás, é verdade, mas não foi a razão por que fui hospitalizado na Bahia e quase morri na casa onde nasci. Sei que tem gente que adora histórias de internações, emergências e coincidências abençoadas, e a ela, pedindo desculpas a quem não gosta, dedico a inevitável explicação que descobri que tenho que dar, antes de reassumir minha missão de ocupar este espaço.
Sou forçado a contar a história por causa do AVC. A maioria das pessoas associa um AVC a seqüelas chatíssimas, sempre incapacitantes. No mínimo, é esperado que se fale embolado, não se consiga mexer um lado do corpo, ou se fique com algum dos sentidos afetado. Meu caso não tem sido diferente e até já fui parado na Ataulfo de Paiva, aqui perto de casa, por uma senhora que falou comigo em tons um pouco indignados. Como que então eu tinha tido um AVC e ali estava, lépido e lampeiro, caminhando com determinação para minhas compras diárias na conceituada pastelaria Rio-Lisboa (não, não recebo um mensalão para promover a dita pastelaria aqui do bairro; no máximo, de vez em quando, uns dois biscoitinhos). Como se explicava isso, tratava-se de mais um golpe publicitário, que decepção para quem até então havia sido minha fã incondicional! Expliquei a ela o que de fato acontecera e aos poucos ela se acalmou, mas receio que nunca mais será a fã que outrora era.
E houve outros incidentes, tais como o que envolveu um companheiro de boteco que topou comigo na mesma rua e me cumprimentou aos berros. Quando perguntei a razão para tal estentor, ele, surpreso, respondeu que lhe tinham contado que meu AVC me deixara praticamente surdo. Da mesma forma que com a senhora, senti nele uma acentuada decepção, principalmente quando revelei que não só estava com meus ouvidos bons, mas com todo o resto funcionando muito bem (ok, ok, quase todo o resto). Esta e mais outras experiências me convenceram da necessidade de dar uma explicação geral.
Para começar, creio ainda não haver atingido suficiente status para ter um AVC de primeira classe. Meu AVC foi de quinta classe, por assim dizer. E - por favor queiram perdoar-me, mas o compromisso do jornalista com a verdade está acima de qualquer outra consideração - não foi um acidente vascular cerebral. É duro, mas tenho de ser honesto. Foi um acidente vascular cerebelar. Ou seja, não foi no cérebro, foi no cerebelo. E só foi AVC, digamos, tecnicamente, porque não passou de uma isquemia minúscula, que só foi detectada por um exame de ressonância magnética do encéfalo.
Portanto, alegro-me em dizer-lhes com absoluta veracidade que o AVC não me deixou lelé. Ou pelo menos não me deixou mais lelé do que talvez muitos pensem que já sou. Sem falsa modéstia, tem gente que me acha meio debilóide. Por exemplo, uma amiga de Guilardo, namorado de minha irmã (ou ex-namorado, não sei bem, nunca fui desses irmãos mais velhos que fiscalizam os namoros da irmã), me viu num programa de televisão e perguntou a essa mesma irmã se eu estava gagá. Portanto, meu nível normal já é esse que vocês conhecem e suponho que, diante de certos critérios, como os da amiga de Guilardo, eu sou gagá ou lelé, mas já era antes, não mudei nada.
E agora certamente despertei a curiosidade de pelo menos alguns de vocês. Se não fui internado por causa do AVC, por que diabo fizeram tanto alarde com minha hospitalização, como se eu fosse morrer? É porque eu quase morri mesmo, encantadora leitora, gentil leitor. Se o hospital de Itaparica não estivesse (juro a vocês; é difícil de acreditar, mas é verdade) nos trinques e não dispusesse do que, baianamente falando, se batizou como ambulancha, ou seja, uma lancha-ambulância, eu teria aberto vaga na ABL. Me fizeram um eletro, analisaram meu sangue e me socaram numa ambulancha em direção a um hospital de Salvador que dispunha de recursos sofisticados.
Encurto a história, para não encher a paciência geral. Eu estava tomando um remédio para pressão alta que costumam prescrever para coroas do meu tope. Tratava-se de um betabloqueador. Não faço idéia das intenções do beta que o bloqueador bloqueia, mas, no meu caso, ele parece haver deixado o poder subir-lhe à cabeça e bloqueou mais betas do que devia, ou mesmo se excedeu e bloqueou alfas, gamas e deltas também. Não sei, mas o fato é que, quando cheguei ao hospital de Salvador, estava com uma braquicardia (por outros chamada de bradicardia, domingo também é cultura) que podia ter-me levado à constrangedora situação de ir dormir vivo e acordar morto. Ou então cair duro para trás no meio da rua mesmo. Eram 34 pulsações por minuto, ou seja, mais ou menos uma a cada dois segundos, ritmo de marcha fúnebre.
O resto pode ser resumido com a minha volta a esta página. Me aplicaram um bloqueador de betabloqueador, me escarafuncharam todo e agora caí na malha médica novamente. A baiana já se conectou com a carioca e não há escapatória. Devo dedicar o resto da existência a submeter-me a torturas e sevícias que fariam a festa de Torquemada. Mas vai sobrar um tempinho para continuar escrevendo aqui. Até porque tenho de relatar as novidades de Itaparica, como por exemplo a que Xepa me contou no bar de Espanha: um amigo dele estava pescando peixe miúdo com uma varetinha e fisgou um tatu. É, um tatu, desses que dão um belo refogado. Este ano o pitaco me impediu, mas em 2008, Deus permitindo, vou fazer uma pescaria de tatu na canoa de Xepa.
O Globo (RJ) 4/3/2007