A religião é a mais antiga e fundamental dimensão da cultura humana. O homem de Neandertal, a primeira espécie de homo sapiens ocorrida no processo evolutivo, há cerca de 160 mil anos, deu indicações de religiosidade nos seus ritos de sepultamento.
O animismo paleolítico conduzia a ver espíritos malignos ou benignos em todas as manifestações da natureza. Esse animismo persistiu até o advento das civilizações. Assim ocorreu com o animismo ítalo-mediterrâneo, com seus numina, que se encontram na origem da religião romana, antes de sua helenização.
A crise do mundo clássico, acelerada no curso do século 3, levou ao descrédito do politeísmo e a crescentes demandas de uma religião de salvação pessoal, abrindo espaço para a difusão do cristianismo. Convertido em religião oficial do Império Romano, a partir de Constantino (reinado, 324-357), o cristianismo se tornou o núcleo configurativo da Civilização Ocidental.
A partir das revelações que, inesperadamente, modificaram sua tranqüila vida de mercador, Maomé se dedicou, desde cerca 600 até seu falecimento em 632, à propagação da nova fé. A essência dessa nova religião é a de que há um só Deus, Alá, de quem Maomé é seu profeta.
É vertiginosa a propagação da nova fé. Inicia-se, com Maomé, com a unificação política e religiosa das tribos árabes. Prossegue, no curso de apenas um século, com a conquista e islamização do Império Persa, da maior parte do Império Bizantino e da Península Ibérica (onde perduraria por sete séculos), espelhando-se, concomitantemente, pelo Egito e Norte da África.
As relações entre essas duas grandes religiões foram historicamente conflitivas, com alguns períodos, sobretudo no âmbito ibérico, de pacífica coexistência. Religiões proselitistas, ambas consideravam “infiéis” os seguidores da outra. O que é particularmente interessante é como cada uma dessas religiões se confrontou com o processo de modernização do mundo e decorrente secularização, a partir do Renascimento e, marcadamente, da Ilustração.
Para se compreender como essas religiões reagiram de forma profundamente diferente ao processo de modernização é necessário levar-se em conta os efeitos, na Civilização Ocidental, do longo conflito entre o papado e o Sagrado Império Romano Germânico, opondo os Hohenstaufen, notadamente esse extraordinário Frederico II, stupor mundi (1194, imperador desde 1220 a sua morte em 1250), ao papado, de Gregório IX a Inocêncio IV (1243-1254). Esse conflito terminou, por um lado, com a derrota final de Conradino, o último Hohenstaufen, em 1268. Por outro lado, com a desmoralização do papado, que se tornou do rei da França, no período de Avignon (1309-1373).
Essa recíproca neutralização do Império e do papado conduziu a Civilização Ocidental a escapar de uma monocracia imperial ou papal e a se constituir num sistema de subsistemas autônomos, o cultural, o político, o econômico e o social. Com isso geram-se as condições para a liberdade individual e de pensamento, que caracterizaram a cultura ocidental a partir do Renascimento e, sobretudo, da Ilustração.
A cultura islâmica, integradora, na Umma, das dimensões religiosa, cultural, política e econômica, resistiu ao processo de secularização conservando, até nossos dias, decisivas características medievais. O islã não teve um Renascimento, nem uma Ilustração – a despeito de intentos modernizadores em diversos momentos e áreas, que só lograram êxito com Mustafá Kemal, na Turquia. O resultado, em nossos dias, foi o de o islamismo conservar seu vigor religioso, a expensas de sua deficiente modernização e, ao contrário, o cristianismo se ter convertido numa moderna cultura científico-tecnológica, e não mais teocêntrica. O mundo ocidental, em nossos dias, se constata inserido em um cosmos destituído de qualquer finalidade, de caráter puramente conseqüencial, mas que abrange a totalidade do que existe espacialmente.
É nesse contexto que Bento XVI, papa-filósofo, manifestando profunda influência hegeleana, procura salvar o mundo de sua absoluta secularização, buscando a mobilização conjunta dos que continuam acreditando em Cristo e dos que persistem com firmes convicções muçulmanas. Esse intento é simbolicamente realizado pela oração conjunta do papa com o grão-mufti de Istambul, Mustafá Cagraci, na Mesquita Azul de Istambul, em novembro passado. Bento XVI reconhece (na sua referência a Manoel II Paleólogo) a profunda ambivalência existente no islamismo, que se propagou pela espada mas subsistiu pela crença. Superando esses aspectos, o papa proclama, no âmbito do agnosticismo contemporâneo (de que participa o autor destas linhas), o imperativo religioso de se adorar o mesmo Deus, a partir de distintos nomes e ritos.
Jornal do Brasil (RJ) 7/1/2007