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A palavra em Shakespeare

 

Ganhou a bibliografia shakespeariana, entre nós, mais um estudo indispensável para o conhecimento de sua obra. É "A linguagem de Shakespeare", de Frank Kermode, que sai no Brasil em tradução de Bárbara Heliodora. Kermode, grande estudioso da palavra como elemento poético (veja-se o seu "No appetite for poetry") analisa a linguagem do bardo e, com isto, revela a força vocabular de sua obra.


Afirmam analistas ingleses que Shakespeare usou mais de 10 mil palavras em seus textos, o que mostra o vasto mundo em que eles pousam. No caso específico, essas palavras, traduzidas por Bárbara Heliodora, com os cuidados de uma estilista em português, conseguem transpor sua força para um leitor que desconheça o original, mas também para os que, conhecendo-o, queiram fazer comparações.


Costumava G. K. Chesterton classificar de "mistagogo" uma série de escritores da língua inglesa, inclusive Shakespeare. Explico logo: "mistagogo" é "mestre dos milagres e dos mistérios". Nas religiões antigas, era o mistagogo quem dava o significado e o alcance das cerimônias e dos ritos que nelas se realizavam. Shakespeariano apaixonado, não escreveu, contudo, Chesterton, um livro sobre seu autor preferido.


Mas publicou, ao longo de sua vida de jornalista, um número tão grande de ensaios sobre Shakespeare que um editor do Japão, Kanekyuska, publicou um volume de Chesterton chamado "Essays on Shakespeare", que passou a pertencer à coleção de escritos sobre ele. De modo diverso, outro grande shakespeareano, Harold Bloom, em livro também já traduzido no Brasil - "Shakespeare: a invenção do humano" - cataloga-lhe as peças nas seguintes categorias: "As primeiras comédias", "Os primeiros dramas históricos", "As tragédias de aprendizado" (entre as quais coloca "Romeu e Julieta"), "As altas comédias" (entre as quais "Sonho de uma noite de verão"), "Os grandes dramas históricos", "As peças problemas" e "As grandes tragédias", que são "Hamlet", "Otelo", "Rei Lear", "Macbeth" e "Antonio e Cleópatra".


Fazendo análise parecida, Chesterton opinou que só tragédia e comédia merecem atenção maior e que, para ele, o melhor Shakespeare estava em "Hamlet", tragédia, e "Sonhos de uma noite de verão", comédia, e que esta era superior a todos, por ser capaz de provocar uma "felicidade extravagante" e jogar o corpo no "paraxismo do riso", acrescentando que todo drama é um dramalhão e que só os extremos - a comédia e a tragédia - são capazes de mostrar o homem inteiro: nu e cru.


Como escolha pessoal fico mais próximo do livro de Kermode que, preocupado com a "linguagem", isto é, com a palavra e sua capacidade real de chegar à tragédia ou à comédia, expõe a tese de que há uma ligação entre Hamlet e o próprio Shakespeare e que, num resultado dessa fusão, Hamlet poderia escrever "Otelo", "Rei Lear", e "Macbeth", inclusive por ser o maior porta-voz do criador de todos eles. Por outro lado, se Falstaff seria o oposto de Hamlet, isto se deve à circunstância de que Falstaff é o cômico por excelência enquanto Hamlet é a própria tragédia.


A linguagem de Shakespeare aparece no Brasil numa edição sob todos os aspectos digna de atenção e de aceitação, inclusive por causa das inúmeras notas de pé-de-página em que Bárbara Heliodora quase que não deixa passar uma só página sem dar a exata explicação do texto nela contido.


Conheci Frank Kermode há muitos anos no University College de Londres e é com alegria que vejo seu livro sobre Shakespeare ser agora publicado no Brasil pela Record. Tradução primorosa de Bárbara Heliodora. Revisão técnica de Roberto Ferreira da Rocha.


Tribuna da Imprensa (RJ) 23/1/2007