Aprendi a agradecer os bons momentos. E o Encontro das Academias, realizado mês passado em Lisboa, foi um deles: nossos dois países, nossas duas instituições, nossa língua o proporcionaram. Testemunhamos o enlace de interesses que são partilhados aquém e além-mar.
Digo "aquém", falando da Europa, no ponto de partida para o outro encontro, aquele realizado pela esquadra cabralina que avistaria ervas, sinais de terra, aves chamadas fura-buchos e logo o monte redondo, despontando de grande e verde arvoredo. Era o oitavário da Páscoa de 1500, passagem vencida do Atlântico pela "frol daquela mancebia jovem", como disse João de Barros da gente embarcada no Restelo. Que terra seria aquela? Nem africana, nem indiana, terra d'além-mar, a terra que teve "diploma lavrado à beira do berço de uma nacionalidade futura", na expressão do nosso Capistrano de Abreu a referir-se à Carta de Caminha.
No tempo em que, nele mesmo, Tempo, e no Espaço, Portugal fez crescer o mundo, somente a palavra escrita daria conta de tal sucesso. Um navio levou a notícia ao reino. E, prossegue Capistrano, "dois degredados, deixados na terra, ficaram na praia chorando". Custa imaginar que "saudade", a pérola do nosso vernáculo, tenha sido a palavra dita e redita, entre muitas lágrimas, pelos que fizeram a língua portuguesa aportar num Brasil ainda sem nome?
Quinhentos e seis anos depois, a palavra, semente da linguagem humana, é a credencial que nos identifica e promove, pela primeira vez na História, a união de nossas Academias. A Academia das Ciências de Lisboa tem seus estatutos aprovados em 1779, pleno século do Iluminismo, tema do Encontro. A Academia Brasileira de Letras os tem lavrados em 1897. Quase eqüidistante das duas datas, 1839 é a do nascimento de Machado de Assis.
No mestre da literatura brasileira, que teve como querida e maior interlocutora a portuguesa Carolina Xavier de Novaes, encontramos o primeiro desenho dos trabalhos acadêmicos: a Casa recém-nascida deveria coligir, se possível, "alguns elementos do vocabulário crítico dos brasileirismos entrados na língua portuguesa e das diferenças no modo de falar e escrever dos dois povos".
Obedece esse programa a dispositivo regimental. Como a outra tarefa - dar andamento ao anuário bibliográfico -, a que diz respeito à língua portuguesa pede "diuturnidade paciente", pois exige: "não só pesquisa grande e compassada atenção, mas muita crítica também. As novas formas da língua, ou pela composição de vocábulos, filhos dos usos e costumes americanos, ou pela modificação de sentido original, ou ainda por alterações gráficas, serão matérias de útil e porfiado estudo. [...] A Academia, trabalhando pelo conhecimento desses fenômenos, buscará ser, com o tempo, a guarda da nossa língua. Caber-lhe-á então defendê-la daquilo que não venha de fontes legítimas - o povo e os escritores - não confundindo moda que perece com o moderno que vivifica".
Imagino Machado deitando sua fina escrita no papel, ou quiçá Carolina, que lhe tomava alguns ditados, a redigir estes preceitos tão válidos quanto atuais. Imagino, também, que entre os guardados do remanso do Cosme Velho, onde ambos viveram e morreram, houvesse uma página anterior, estampada em O Novo Mundo - New York. É de 1873: "Não há dúvida que as línguas se aumentam e alteram com o tempo e as necessidades dos usos e costumes. Querer que a nossa pare no século 500 é um erro igual ao de afirmar que a sua transplantação para a América não lhe inseriu riquezas novas. A este respeito, a influência do povo é decisiva".
Tudo isso sustenta o dispositivo primeiro dos Estatutos assinados por Machado e companheiros em 28 de janeiro de 1897: a Academia Brasileira de Letras "tem por fim a cultura da língua e da literatura nacional". Para nós, ter estado em Portugal é ter estado fora da geografia do Brasil e não fora da vida do Brasil.
Jornal do Brasil (RJ) 6/12/2006