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Discurso de posse

Senhor Presidente,
Autoridades,
Embaixadores,
Querida Rosa Freire d’Aguiar Furtado,
Estimados Confrades,
Senhoras e Senhores:

Ser eleito para esta Academia constitui, para qualquer intelectual brasileiro, a mais alta distinção. Fico imensamente grato aos preclaros confrades por sua generosidade. Não posso deixar de referir, pessoalmente, esse quinteto mozartiano da cultura, composto por Afonso Arinos, Alberto Venancio, Candido Mendes, Cícero Sandroni e Pe. Fernando Bastos de Ávila, amigos que tanto se empenharam para que eu ingressasse nesta Casa.

Como todos aqui presentes, estimaria que não me tocasse suceder Celso Furtado porque ele continuaria vivo entre nós, nos brindando com sua lucidez. Uma vez que nos antecedeu na saída deste mundo, nada me poderia ser mais grato do que sucedê-lo. Mantive com Celso estreita amizade por mais de meio século, identificado com suas idéias e projetos e por ele tendo tão grande estima quanto alta admiração. Há autores que se tornaram grandes porque escreveram grandes obras. Proust e Joyce, entre outros. Bem mais raro é o grupo dos que escreveram grandes obras porque eram grandes homens. Celso Furtado é certamente um desses.

Senhor Presidente:

Nesta Casa a Cadeira n.o 11 tem como patrono essa amável figura de romântico tardio que foi Fagundes Varela e por primeiro ocupante Lúcio Furtado de Mendonça, intrépido militante da República e principal instigador da fundação desta Academia. Sucede-lhe o preclaro jurista Pedro Lessa. Eduardo Pires Ramos, fino espírito satírico, não chega a ocupar a cadeira, na sucessão de Lessa. A ele se segue esse alegre trovador que foi Adelmar Tavares e, depois dele, o eminente neurologista Deolindo Augusto Nunes Couto.

O cintilante Darcy Ribeiro será o sétimo ocupante da Cadeira n.o 11. Personalidade exuberante, com chispas de gênio e espantosa vitalidade, Darcy foi, ao mesmo tempo, um grande antropólogo e educador e um homem de ação. Agregou à sua obra antropológica a fundação da Universidade de Brasília e a militância trabalhista, ao lado de João Goulart. Foi Ministro da Educação no gabinete parlamentar de Hermes Lima, quando Celso Furtado ocupava a pasta do Planejamento. Amigo e admirador de Darcy, Celso teve muito trabalho para conter, dentro das modestas possibilidades do orçamento federal da época, as chamadas “metas educacionais mínimas”, de Darcy, cujo atendimento comprometeria quase que a totalidade do orçamento.

Afetado por gravíssimo câncer pulmonar, Darcy, então no exílio, proscrito pelo regime militar, recebeu autorização para voltar ao Brasil, para o que todos supunham seria sua eminente morte. Com sua indomável energia e espantosa vitalidade, Darcy fugiu da sua segunda internação no hospital e logrou, por conta própria, equilibrar sua saúde por bastante tempo.

É para mim, como cientista social, extremamente auspicioso o fato de estar sucedendo, na Cadeira n.o 11, a dois dos mais eminentes cultores dessa matéria. Essa seqüência, de que tanto me regozijo, é uma demonstração, entre muitas outras, da medida em que, não obstante sua natural preferência pelas letras literárias, esta Casa confere a outras disciplinas humanas particular atenção.

Vida e Obra de Celso Furtado

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores:

Estimaria, agora, delinear, com nostálgicas saudades, alguns breves comentários sobre Celso Furtado e sua obra.

Celso Furtado foi uma personalidade multifacética, que deixou profunda marca nas muitas dimensões do espaço que ocupou. Salientaria, como principais, a do teórico e a do planejador do desenvolvimento, a do militante da democracia social e a do humanista. Influenciado pela preocupação positivista com o rigor científico, pelo pensamento histórico-sociológico de Marx, por Keynes e sua escola e, particularmente, por Raúl Prebisch, Celso sempre considerou, seguindo Max Weber, a necessidade de se compreender historicamente o social e sociologicamente o histórico. Como teórico do desenvolvimento insistiu na importância de se inserir, nos esforços sincronicamente analíticos da economia, uma visão diacrônica, de caráter histórico-sociológico. Por outro lado, Celso sempre entendeu que a realidade social, como processo histórico, era mutável e susceptível de uma intervenção orientadora e reguladora do Estado, sempre que este dispusesse de satisfatória autonomia decisória. Daí sua ênfase na preservação da autonomia de Estado e no planejamento indicativo.

Concomitantemente, Celso Furtado era profundamente motivado pela necessidade, no caso de um país como o Brasil e, de um modo geral, da América Latina, de se mudar seu extremamente injusto perfil social, o que lhe parecia exeqüível por via de uma ativa democracia social. Era radicalmente oposto a todas as formas autoritárias e cético das revoluções, que tendem a descambar para o autoritarismo. Acreditava na eficácia da militância reformista por via democrática. E nisso intervinha seu profundo humanismo.

No curso de seus profícuos 84 anos, a vida de Celso se desdobra em cinco períodos bem diferenciados: (1) o período formativo, de seu nascimento em Pombal, no sertão da Paraíba, em 26 de julho de 1920, a seu ingresso na CEPAL, em 1949; (2) o período cepalino, daquela data a 1958, quando se desliga da instituição; (3) o período brasileiro, em que exerce relevantes funções públicas, até o golpe militar de 1964; (4) o período de exílio, de grande fertilidade intelectual, predominantemente passado na Sorbonne, em Paris, até seu regresso ao Brasil, em 1985; e (5) finalmente, seu novo período brasileiro, até seu falecimento em 2004.

No período formativo de Celso Furtado, dos estudos iniciais na capital da Paraíba a seu ingresso na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, em 1940, e, por concurso em 1943, no DASP, destaca-se sua atuação na Itália, na Segunda Guerra Mundial, como Aspirante a Oficial, integrante da FEB. Dessa época surge seu primeiro livro, Contos da Vida Expedicionária, de 1946.

Em 1946 ingressa no curso de doutoramento em Economia da Sorbonne e se diploma, em 1948, com a tese “L’Économie Coloniale Brésilienne”, sob a direção do Prof. Maurice Byé. Em agosto desse mesmo ano retorna ao Brasil e se junta ao quadro de economistas da Fundação Getulio Vargas.

A fase cepalina de Celso Furtado será decisiva na ultimação de sua formação intelectual. Nela lhe é dado manter um convívio assíduo com Raúl Prebisch, dele absorvendo um dos marcos de seu pensamento, a díade “centro-periferia”. Nos seus dez anos de CEPAL Celso teve a oportunidade de estudar ampla e profundamente os problemas da América Latina e de manter freqüente contacto com relevantes personalidades da região. Datam desse período seus livros A Economia Brasileira, de 1954, o importante estudo Uma Introdução à Técnica de Programação, de 1955, Uma Economia Dependente, de 1956, sua conferência no ISEB, “Perspectivas da Economia Brasileira”, de 1958, e, no curso de um estágio na Universidade de Cambridge, seu clássico Formação Econômica do Brasil, de 1959.

A fase “brasileira” de Celso Furtado será a mais importante, no que se refere à sua atuação como planejador do desenvolvimento e como militante de uma reforma social democrática. Designado, pelo Presidente Kubitschek, interventor no Grupo de Estudos do Desenvolvimento do Nordeste, elabora “Uma Política de Desenvolvimento para o Nordeste”, que dará origem ao Conselho do Desenvolvimento do Nordeste. No ano seguinte, de passagem pela Universidade de Cambridge, seu já referido clássico Formação Econômica do Brasil.

Em 1960 o Congresso aprova a Lei da Sudene e Celso é nomeado superintendente da nova agência, com sede em Recife. Nesse mesmo ano publicou Subdesenvolvimento e Estado Democrático. Concomitantemente com sua profícua atividade na direção da Sudene – que imprimirá ao Nordeste uma taxa de desenvolvimento superior à média brasileira – Celso publica, em 1961, o livro em que desenvolverá sua original visão do problema, Desenvolvimento e Subdesenvolvimento.

No governo parlamentar, sendo primeiro-ministro Hermes Lima, Celso exerce a pasta de ministro do Planejamento. É nesse período que prepara um importante projeto, o Plano Trienal, em que indicou as medidas necessárias para retomar, nas difíceis condições daquele momento, o esforço de desenvolvimento nacional. O golpe militar de 1964 impediu a execução do plano. Celso, que então já havia retornado para a direção da Sudene, é cassado e parte para o exílio.

O período do exílio o manterá fora do país, predominantemente na Sorbonne, em Paris, de 1964 a 1985.

Esse período, para Celso, diversamente do ocorrido com outros proscritos do país, foi da mais intensa atividade intelectual. No curso de seus vinte anos de exílio Celso publicou Teoria e Política do Desenvolvimento, em 1967. No ano seguinte, Um Projeto para o Brasil. Em 1969, Formação Econômica da América Latina. Análise do Modelo Brasileiro aparece em 1972. No ano seguinte, A Hegemonia dos Estados Unidos e o Subdesenvolvimento da América Latina. Em 1974 surge O Mito do Desenvolvimento Econômico. Segue-se A Economia Latino-Americana, de 1976, Prefácio a uma Nova Economia, do mesmo ano, Criatividade e Dependência na Civilização Industrial, de 1978, Pequena Introdução ao Desenvolvimento, de 1980, O Brasil Pós-Milagre, de 1981, A Nova Dependência, Dívida Externa e Monetarismo, de 1983, e Cultura e Desenvolvimento em Época de Crise, de 1984.

Em 1985, com a anistia e a restauração democrática, Celso Furtado retorna ao Brasil. Nesse último período de sua vida Celso voltará à atividade pública, como Embaixador junto à Comunidade Européia, em 1986, e ministro da Cultura, no Governo Sarney, de 1986 a 1988. Em 1997 é eleito para a Academia Brasileira de Letras e, em 2003, para a Academia Brasileira de Ciências. Nesse período, publica A Fantasia Organizada, em 1985, Transformação e Crise na Economia Mundial, de 1987, A Fantasia Desfeita, em 1989 e, nesse mesmo ano, ABC da Dívida Externa. Seguem-se, em 1991, Os Ares do Mundo e Introdução ao Desenvolvimento, em 2000, O Capitalismo Global, em 1998, e, em 2002, Em Busca de um Novo Modelo. Sua obra autobiográfica seria reunida em três tomos, por sua segunda esposa, Rosa Freire d’Aguiar, sob o título Obra Autobiográfica de Celso Furtado, publicada em 1997. Celso falece subitamente no dia 20 de novembro de 2004.

O que empresta a maior originalidade à teoria do desenvolvimento de Celso Furtado é o fato de que, alicerçada em ampla cultura histórica, sociológica, econômica e política, sua contribuição, tratada com superior inteligência e elegante estilo, introduz um novo entendimento da economia, que é abordada, concomitantemente, a partir de uma diacrônica visão histórica e de uma rigorosa análise sincrônica. Dentro dessa perspectiva diacrônico-sincrônica, Celso se vale do conceito prebischeano de “centro-periferia” para lhe conferir um sentido muito mais amplo, o que lhe permitirá uma nova compreensão da díade “desenvolvimento-subdesenvolvimento”.

Essa nova visão do complexo desenvolvimento-subdesenvolvimento permite a Celso a definitiva superação do tratamento clássico da questão, de Ricardo a Keynes. Celso mostra que o desenvolvimento não é uma fase “madura” do subdesenvolvimento, nem este uma fase “primitiva” daquele. O que ocorre é algo de muito diferente. O que ocorre é que as economias da Europa Ocidental, a partir dos descobrimentos marítimos e da Revolução Mercantil, são conduzidas a formas de acumulação do excedente social que lhes permitirão incorporar as inovações técnicas que surgem dos séculos XVI a XVIII e encontram, na segunda metade deste, grande aceleração, na Revolução Industrial. Esse processo de acumulação do excedente, sob forma mercantil, inicialmente, e a partir de fins do século XVIII, sob forma crescentemente industrial, conduz esses países a instituir, com os países que se conservam meramente produtores de bens minerais ou agrícolas, um regime assimétrico de trocas que maximiza, naqueles países, os lucros e benefícios do intercâmbio, convertendo-os em países centrais e tornando os outros numa periferia. Naqueles se processa um crescente desenvolvimento. Estes, permanecem estagnados na condição de subdesenvolvidos.

Desenvolvimento-subdesenvolvimento é o resultado histórico, econômico e sociológico de um longo processo diferenciado de acumulação do excedente, favorecedor dos países centrais, em detrimento dos periféricos. Naqueles o progresso técnico se efetua mediante modalidades cada vez mais eficazes de produção. Nestes, o progresso assume a forma de mera “modernização” e se manifesta na crescente sofisticação no consumo dos bens importados pelas minorias dominantes dos países periféricos.

Essa visão do processo de desenvolvimento comandará a atuação de Celso como planejador do desenvolvimento do Brasil do Nordeste. Seus projetos se orientam no sentido de transferir o progresso técnico do produto para a produção.

Profundamente motivado para contribuir para a modificação do pérfido perfil social brasileiro, Celso, como militante democrático-social e como humanista, se empenha no sentido de que os projetos de desenvolvimento, ademais de orientados para a crescente eficácia dos modos de produção, sejam, igualmente, orientados para maximizar a inclusão, em melhores níveis de educação, de capacidade de trabalho e de vida, das imensas massas marginais do Brasil.

Como tive a oportunidade de dizer, ao iniciar esta exposição, Celso não foi apenas o autor de uma grande obra, mas a produziu porque foi um grande homem.

A personalidade e a obra de Celso Furtado constituem uma indicação, dentro da extrema heterogeneidade que caracteriza a sociedade brasileira, da medida em que nela continuam a surgir, como ocorreu em seu passado, pessoas que se revestem da maior universalidade. Se, no caso de alguns como, por exemplo, Tobias Barreto ou Farias Brito, seu universalismo decorreu da completa assimilação de uma das grandes vertentes culturais do Ocidente, a alemã, naquele, a francesa, neste, o universalismo de Celso Furtado se revela na medida em que uma profunda identificação com suas raízes regionais e nacionais o leva ao mais compreensivo entendimento do mundo.

Subsistem, na personalidade de Celso Furtado, as grandes características do sertanejo nordestino, como a sobriedade da conduta, a austeridade dos hábitos, ou o entranhado amor à própria terra e aos seus costumes. Todas essas características, entretanto, são administradas por uma alta cultura universal e uma penetrante lucidez, o que o leva ao alto nível de universalidade que lhe foi internacionalmente reconhecido.

Consumismo Intransitivo

Senhor Presidente:

Como sucessor de um homem de espírito tão universal como Celso Furtado, continuamente atento a tudo o que ocorria no mundo e a seus reflexos sobre o Brasil, não poderia deixar de considerar, ainda que brevissimamente, os sérios problemas com que o Brasil e o mundo se defrontam, neste início do século XXI. Creio que, dessa imensa problemática, possam ser destacadas duas questões particularmente relevantes, aquela que se refere ao destino dos Estados nacionais, confrontados com o processo da globalização, e a que se refere às sociedades ocidentais, nas quais a erosão dos valores religiosos e tradicionais, ademais de outros fatores, suscitaram um consumismo intransitivo, adverso à preservação da transcendência do homem.

Não me proponho, nas sucintas considerações que se seguem, discutir em termos mais profundos a problemática da transcendência. Considerada, de um modo geral, transcendência, como nos ensina Santo Agostinho, é o processo em virtude do qual um ser, permanecendo o que é, se ultrapassa a si mesmo. Dar-se-á tal fenômeno porque um ser absolutamente transcendente, Deus, se encontra, como dizia Teilhard de Chardin, no início e no fim de tudo, como alfa e omega do universo? Ou, segundo outra visão filosófica, de que pessoalmente participo, porque o cosmos contém, como uma de suas propriedades ou constantes, uma transimanência, em virtude da qual, entre outros efeitos, surgiram a vida, neste planeta e, nele, um ser dotado de liberdade racional, como o homem? Aqui deixando sem resposta esta magna questão, observarei apenas que nenhuma antropologia filosófica consistente pode omitir a constatação de que ocorreu, na extraordinária série evolutiva da vida, no curso de cerca de 3,5 bilhões de anos, algo que, a partir de uma emergente protobactérica originaria, conduziu, há cerca de 70 milhões de anos, ao aparecimento de animais dotados de superiores qualidades, como os primatas, e dentre estes à emergência, há cerca de 2 milhões de anos, de uma linha que conduziu ao homo sapiens, dotado de liberdade racional.

O exercício da liberdade racional requer uma complexa pauta de valores, que historicamente se configuraram a partir de diversas e sucessivas mitologias e teologias, culminando com as grandes religiões monoteístas, entre estas sobressaindo o cristianismo. O curso do pensamento filosófico e científico, no Ocidente, a partir, notadamente, do século XVIII, suscitou sérias criticas às concepções religiosas do mundo. À crise resultante do conflito entre a razão e a fé, de que há esparsas manifestações desde a Antiguidade grega e no Renascimento, conduziu, sob o influxo de outros fatores, ao consumismo intransitivo que caracteriza os setores afluentes das sociedades ocidentais contemporâneas.

O completo relativismo do chamado pensamento pós-moderno coonesta, teoricamente, esse consumismo intransitivo. Não se consome para viver. Vive-se para consumir. Nesse contexto cultural a transcendência humana fica submergida no imediatismo do consumo e soçobram os valores superiores de que depende a viabilidade de formas igualmente superiores do convívio humano. Daí surge uma cultura da fraude e da violência, que ameaça se generalizar no mundo civilizado. Pode-se esperar, realisticamente, uma saída desse imanentismo, que restaure, não arbitrariamente, uma hierarquia de valores compatível com formas superiores de sociabilidade?

Escaparia às dimensões convenientes para esta exposição qualquer intento de mais profunda discussão dessa questão. Limitar-me-ei, por isso, a duas ordens de considerações. A primeira consiste em recordar o fato de que o consumismo intransitivo não é uma invenção de nosso tempo, dele havendo numerosos vestígios históricos. Assim ocorreu no primeiro período intermediário do antigo Egito, de 2200 a 2050 a.C., algo de que nos dá notícia o “Canto do Harpista”. Assim ocorreu na Babilônia de Baltazar, de cuja condenação a Bíblia nos narra a terrível inscrição que surge nos muros do palácio real, “mene, tekel, phasin”. Assim na Roma de Nero, como nos conta o Satyricon de Petrônio. Assim muitos outros exemplos. O que ocorre, em síntese, é o fato de que as sociedades de cultura intransitiva não perduram a longo prazo. Ou se auto-reformam como, para o caso romano, contribuíram o estoicismo e o cristianismo, ou são destruídas por outras sociedades, como na Babilônia.

Já é manifesta, no mundo contemporâneo, a ocorrência de um autocorretivo ao consumismo intransitivo, com a emergência de uma elite de poder, mais visível nos EUA de Bush, mas igualmente existente nos demais países ocidentais, que conduz ao domínio dos consumistas intransitivos por diversas modalidades de controle social. Por outro lado, emerge, concomitantemente, uma nova ética social, um neo-humanismo social e ecológico, de que são mensageiros os grandes pensadores de nossos dias, de Karl Jaspers, Max Scheler e Cassirer a Habermas e de que são veículos diversos movimentos populares, dos “verdes” às várias modalidades religiosas de neofideísmo. Ao consumismo intransitivo, no Brasil e no mundo, está se opondo esse emergente neo-humanismo, como alternativa a uma mera elite de poder.

Instituições como esta Academia, ademais de suas funções de preservação da língua e da cultura de que somos portadores, são agências a que cabe a alta tarefa de conservar e difundir os valores superiores do humanismo. Esse humanismo que mantém o legado do humanismo clássico e renascentista, de Sócrates a Montaigne, bem como do humanismo contemporâneo de Ortega, Horkheimer e autores já mencionados, assim como, entre nós, Sergio Rouanet, Mario Vieira de Mello e Miguel Reale, com o indispensável agregado, em nossos dias, de um sentido social e ecológico, como no caso de Celso Furtado.

Destino Nacional

A outra grande dimensão dos problemas com que atualmente se defrontam o Brasil e o mundo diz respeito à situação do Estado nacional, ante o acelerado processo de globalização de nossos dias. A concentração de poder econômico-tecnológico, cultural, político e militar, na única remanescente superpotência, os Estados Unidos, permitiu a esse país se apropriar do processo de globalização e fazer de sorte a que, na atualidade, os processos de modernização se confundam com os de americanização do mundo.

Ante esse processo, as nações do mundo, com poucas exceções, estão perdendo a possibilidade de preservarem, isoladamente, sua identidade nacional e seu destino histórico. Estão se convertendo, rapidamente, em meros segmentos indiferenciados do mercado internacional e em províncias do “Império Americano”. Um império distinto de todos os precedentes históricos, do Romano ao Britânico, porque não se realiza sob a modalidade de uma dominação formal, exercida por um procônsul ou vice-rei, mas sob a forma de constrangimentos irresistíveis, de caráter econômico, tecnológico, financeiro, cultural, político e, quando necessário, militar. Suas “províncias” conservam as aparências da soberania, hino nacional, bandeira, exércitos de parada, até, nos países democráticos, eleições. Os dirigentes desses países, todavia, independentemente da forma como assumam o poder, se defrontam com um intransponível conjunto de constrangimentos que os compelem a atender às exigências do mercado internacional e, em última análise, de Washington.

Os países europeus, apesar de seu alto nível de desenvolvimento, tiveram, para escapar a esse destino, de se integrar na União Européia. Países continentais, como China e Índia, logram preservar sua identidade nacional na medida em que mantenham, como o estão conseguindo até agora, uma acelerada taxa de crescimento econômico e de desenvolvimento próprio.

Um país como o Brasil, a despeito de sua condição semicontinental, sofre de uma terrível deficiência de integração social. Para lograr, isoladamente, um nível de integração social que lhe assegurasse um desenvolvimento sustentável, o Brasil necessitaria do transcurso de, pelo menos, três gerações, ou seja, de cerca de meio século, e isto se lograsse, no curso desse período, manter satisfatórias taxas de crescimento econômico. A História não nos dá esse prazo. Não dispomos de mais de vinte anos para alcançar esse desejável patamar de desenvolvimento auto-sustentável.

Depara-se, assim, nosso país, com um gigantesco desafio. Ou adota, pronta e eficazmente, medidas que lhe permitam enfrentar o desafio de uma globalização americanizadora e alienante ou, a relativamente curto prazo, se converterá, como está ocorrendo com tantos outros e do que já há muitos indícios no nosso, em mero segmento indiferenciado do mercado internacional e província do império.

Ante esse terrível desafio surge a pergunta: “O que fazer?” Mais uma vez as dimensões desta exposição não me permitiriam mais ampla discussão dessa decisiva questão. Seja-me permitido, assim, dar-lhe uma resposta sintética, que contenha o essencial daquilo que está em jogo. Essa resposta tem duas dimensões, uma interna, outra externa. A dimensão interna consiste em retomar, energicamente, o caminho do desenvolvimento, tal como magnificamente ilustrado pelo Governo Kubitschek. Algo que requer apropriado ajustamento às novas condições do mundo. Algo que tem como premissa fundamental o fato de que todas as grandes reformas de que necessita o Brasil têm, como pressuposto, uma pronta e profunda reforma política. A dimensão externa é a integração sul-americana, a partir da consolidação de Mercosul e, esta, da constituição de uma séria, confiável, e reciprocamente vantajosa aliança argentino-brasileira.

Mencione-se, a respeito de nosso sistema político, que a redemocratização não instituiu, no Brasil, uma democracia representativa e sim uma democracia de clientela. Daí a escandalosa situação que está sendo presentemente revelada. O atual sistema político brasileiro nos proporciona uma classe política extremamente deficiente. É surpreendente que, assim mesmo, surjam alguns homens públicos de alta qualidade. Cabe reconhecer que se não introduzirmos, urgentemente, amplas e profundas reformas, que instituam o regime distrital misto e o financiamento público das eleições, que conduzam à eliminação dos partidos anões, que são balcões de negociatas políticas, que imponham a fidelidade partidária e que adotem medidas que levem, para cada legislatura, à formação de uma coalizão partidária estável, dotada de programa e liderança únicos, e que assim assegurem maioria parlamentar responsável, nada se poderá fazer.

O prazo é igualmente curto para que aceleremos o processo de integração da América do Sul. Um importante passo, nesse sentido, foi dado com a recente constituição da Comunidade Sul-Americana de Nações. Importa agora, a partir de uma sólida e reciprocamente benéfica aliança do Brasil com a Argentina, consolidar o Mercosul e consolidar essa Comunidade. Se o fizermos, nos situaremos, com os demais países da região, entre aqueles aptos a preservar suas identidades nacionais e seus respectivos destinos históricos. Se não o fizermos, nos converteremos em mera geografia, num grande espaço territorial ocupado por um povo que perdeu relevância histórica.

Obrigado.